HOJE ANDA À RODA
Nove horas da manhã de quinta-feira, do dia 28 de Dezembro de 1972...
O sol brilhava mas a aragem cortante penetrava pelos agasalhos e enregelava os ossos.
Olha a grande! Quem quer a grande?
Há horas de sorte!
Com as cautelas presas por uma mola à banda do casaco de xadrez velho e desbotado, na cabeça um boné de napa, com pala rija preta e luzidia, encimado por uma placa oval de metal dourado com o número da licença de vendedor de lotaria nacional, e uma coçada mala de cabedal ao tiracolo, o Nicolau palmilhava o “canal”, incansável, para cá e para lá, desde o Largo da Portagem, a Ferreira Borges, a Visconde da Luz, até à Praça 8 de Maio, bradando e apregoando a sorte para os outros
. Não se lhe conhecia família.
Morava sozinho num quarto alugado na Rua das Padeiras. Havia mais de vinte anos que era cauteleiro, sem nunca ter exercido outra profissão. Chegou a tirar a carta de condução no Zé Pais, ao Calhabé, mas nunca arranjou dinheiro para um carro.
Ao meio-dia daquela quinta-feira ia andar à roda e ele só tinha até às onze horas para entregar à Santa Casa o jogo que não conseguisse vender, onde lhe restituiriam o dinheiro das cautelas devolvidas. Como sempre fazia todas as semanas com o jogo sobrante...
O dia não lhe estava a correr mal. Às onze menos um quarto já só lhe restava meio bilhete para vender. Em frente ao Café d’ A Brasileira, viu aproximar-se um senhor muito bem posto.
Repetiu a cantilena, em voz tronitroante, abanando o meio bilhete à frente dos olhos daquele passante. Via-se que era gente fina, que era endinheirado.
Mas este, indiferente, de olhar vazio e distante, nem pareceu dar pela sua presença.
Mesmo assim, o Nicolau seguiu ao lado dele até ao Café Montanha, insistindo para que lhe ficasse com o meio bilhete.
Era o 33321, o que noves fora dava 3. E três era a conta que Deus fez, asseverava-lhe o Nicolau.
Mas o tal senhor, insensível a este e outros argumentos, nem para ele olhou, nem um gesto lhe fez. Tão pouco se dignou, ao menos, dizer-lhe que não com um simples aceno.
Quem cala consente, conjecturava o cauteleiro. O gajo está mortinho para me comprar o jogo. Está a fazer-se caro mas, não tarda nada, vai-me ficar com o meio bilhete, dizia para os seus botões.
Porém, ao vê-lo descer as escadinhas ao lado do Aeminium, resoluto, em direcção à Praça Velha, desistiu. Convenceu-se, finalmente, que o homem não lhe compraria nada.
Olhou para o relógio. Gaita! Já eram onze e cinco! Ainda correu à Santa Casa mas já não lhe puderam aceitar a devolução do meio bilhete.
Ficou com ele, que remédio! Lá se tinha ido o lucro de uma semana de trabalho!
Mas o Nicolau tinha razão. Três, sempre era a conta que Deus fez. A taluda, nesse dia saiu ao número 33321!
Nem queria acreditar que tinha ficado rico! Pulava de contente, contava aos clientes habituais que a sorte, depois de anos e anos de vida humilde e sofredora, lhe tinha batido à porta. Deus era justo, afinal! Agora já não passaria mais dificuldades, proclamava ele com um brilho de felicidade nos olhos encovados.
A notícia espalhou-se por toda a cidade com a velocidade do rastilho que faz detonar a dinamite.
No dia seguinte, o mesmo senhor muito bem posto, a quem não conseguira vender o jogo na véspera, abordou-o na esplanada do Café Montanha, onde o Nicolau, de perna cruzada, estava refastelado a beber o café matinal, depois de ter ido à Santa Casa para saber quando receberia o prémio e de ter depositado o meio bilhete no Banco, como o tinham aconselhado, prevenindo a sua perda ou furto.
O dito senhor muito bem posto, com um largo sorriso afectuoso e inesperada prosápia, pediu-lhe licença para se sentar, deu-lhe uma palmada nas costas, felicitando-o, e sugeriu-lhe que investisse a fortuna que tinha ganho. Porque barco parado não faz viagem...
Estendeu-lhe a mão e apresentou-se:
- Chamo-me Sebastião Cardoso Viegas. Sou dono da Empresa de Construções Secavi, S.A.R.L.
Conversaram longamente à mesa do café. Quinze dias depois, o Nicolau exibia aos amigos, inchado de vaidade, a escritura que tinha acabado de assinar no cartório notarial da Rua da Sofia. Distribuía cartões de visita com o seu nome e a tarja a dizer “Administrador”. Revelava que agora era o dono e único accionista de uma grande empresa de construção civil. Daquela que o Sr. Viegas lhe vendeu, por se sentir velho e com uma doença incurável, segundo lhe tinha confidenciado muito em segredo. A Secavi, S.A.R.L. tinha uma dúzia de grandes camiões novos, diversa maquinaria pesada, quatro gruas e vários terrenos para construção, espalhados pelos arredores de Coimbra.
O Nicolau não se cansava de mostrar, orgulhoso, toda essa riqueza aos seus amigos, levando-os a visitar, a bordo do seu Mercedes novo, verde escuro, cheio de cromados, o estaleiro do lado de Santa Clara e alguns terrenos na Portela, no Tovim, na Adémia e na Pedrulha.
Um ano e meio passado, em plena canícula, já depois de lhe terem sido arrestados os bens da firma, executadas as hipotecas, accionados os avales e penhoradas todas as contas da empresa e mesmo as particulares, para pagar impostos em atraso, contribuições em divida à Previdência, mútuos bancários, juros vencidos e avultadas dívidas a fornecedores, o Nicolau, que até aí nem sabia o que significavam muitos daqueles esquisitos palavrões, voltou à Baixa, com o mesmo casaco de xadrez e o mesmo boné, traje que usava sempre, fosse verão ou fosse inverno.
A voz estridente do seu pregão voltava a ecoar pelas paredes dos prédios do “canal”:
Olha a grande! Quem quer a grande?
Há horas de sorte!
Rui Felicio
NB: o Nicolau ganhou uma alcunha que lhe ficou para o resto da vida.
Chamavam-lhe o Dois Mil.
Que foi o prémio ( dois mil contos) que lhe calhou no meio bilhete...
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