Estava um dia lindo. Os campos cheiravam a terra fresca e regada. As batateiras já estavam enfeitadas de branco e amarelo. Não tardaria a ser preciso ir arrancá-las.
_ Ai mãe!, não tarda temos as batatas encascadas, home! Nem sei bem quem nos irá fazer carava! E, este ano, doente como andas, nem tu te atreves a pegar no sacho!...
_ Pois não, Maria! Que vai ser de nós!?
_ Já viste?!, este ano não há cá gente com força! Os homens fortes abalaram todos e até as mulheres estão de partida!...
_ Falando nisso, a nossa Conceição "já se abala" esta semana com os cachopitos. Até a Alice sai do colégio. Parece que a Isabel Maria já tem trabalho por lá.
Lembro-me tanto destas conversas no ano de 1955 e nos seguintes. Era tão triste ver a aldeia a ficar sem gente. Aquela aldeia cheia de vida desde o romper da aurora até ao toque das Trindades de cada dia.
Na década de sessenta, a pouco e pouco deixavam de passar as vacas a caminho dos lameiros, não havia rebanhos, não se semeava o linho, já eram as mulheres que jungiam as parelhas e pegavam na rabiça do arado. Não havia cantigas ao domingo pelas quelhas e ruas do povoado! Os velhos castanheiros iam secando, a canalhita já não jogava ao motcho, ao berlinde, às chinas... no Largo do Enxido, nem havia meninas que chegassem para fazerem uma roda no pátio do recreio. As cachopas já não se aperaltavam para ir à fonte, porque os mancebos que deveriam estar a esperá-las tinham emigrado, estudavam ou, na maior parte, tinham sido mobilizados para a guerra no Ultramar.
Os que arranjavam força para partir sofriam o embate da despedida, de usos, costumes e da nova língua. Como era difícil querer falar e não saber palavras para se exprimirem. Mas os que ficavam, Deus meu, sem terem quem ajudasse a acarretar a lenha para o lume de todos os dias, quem ajudasse naqueles trabalhos sempre feitos em conjunto, quem jogasse às cartas ao serão... Ali ainda não tinha chegado a electricidade, o rádio a pilhas só fazia ruído e não se percebia nada, o cinema projectado nas paredes da garagem deixou de aparecer e dos saltimbancos em caravana ninguém mais ouviu falar .
As cartas eram desejadas como o maior tesouro. Quem tinha ficado mal as conseguia ler. Uns porque nunca tinham aprendido, outros porque os olhos já não conseguiam decifrar aqueles rabiscos... E as saudades eram tantas!...
Vinha Agosto! Que mês mais desejado! Que euforia!... Mas era tão pequenino! Passava tão depressa! Nem dava para se reconhecerem.
Uns queriam fazer tudo: ceifar o feno, fazer a malha do centeio, acarretar lenha para deixar na alpendurada do curral, ir regar, abrir as arcas e pôr a roupa ao ar, arear as panelas de ferro na ribeira, esfregar os soalhos da casa... como se quisessem deixar gravada a sua presença o ano inteiro... ;
Outros queriam ir às festas da aldeia e dos arredores, ir à praia passar uns dias a descansar ... e mostrar Portugal aos filhos...
Enquanto se mantinham por lá, todo o tempo era pouco para falarem dos "achalemes", dos "briques", das "vacanças", das "vuaturas"...
Nunca me lembro de lhes ter ouvido falar dos enormes sacrifícios que a vida lhes impunha para poderem juntar um bom mealheiro. Sei que a esperança duma vida melhor para os filhos e seu próprio futuro era mais importante do que aquele tão penoso tempo presente. Bastava vivê-lo não era necessário falar dele.
Georgina Ferro
Sem comentários:
Enviar um comentário