sexta-feira, 30 de março de 2012

MEMÓRIAS ...

A Arte Xávega ...
Deixei-me acorrentar pela saudade. Sentado no areal, olho os barcos de proa erguida, que repousam em cima de rolos de eucalipto. Lembro o Balseiro, com a sua avantajada barriga, a comandar as hostes dos guerreiros do mar. Os homens, de calças de flanela arregaçadas pelo joelho e os bois de olhar meigo e paciente, empurravam as embarcações, que rolavam em declive até ao oceano que as acariciava. Depois, os pescadores, todos em conjunto, saltavam para dentro do dorso amarelo da nau, enquanto um camarada de pulsos espessos, segurava em terra, a corda que não permitia ao barco rodopiar. De proa ao céu e os remos em mergulho rápido e ritmado, a luta era agora titânica. Eram três vagas de ondas. Três assaltos, até o barco deslizar num mar mais chão. Na praia, com a mão sobre os olhos, em jeito de pala por causa do sol luminoso, que avassalava os céus de Mira, as varinas, de avental e lenço negro na cabeça, observavam com ansiedade as manobras de partida. Sim, eram três duros assaltos, naquela luta com o mar. E ao terceiro lanço, daquela espécie de roleta da sorte e da vida, o mar entregava-se em brando marulhar. Os remos, qual batuta de maestro, executavam agora uma coreografia em compasso lento mas bem afinado, que impelia o barco para o largo, até a sua silhueta longínqua se esfumar por entre a bruma da maresia.
Era assim. Era sempre assim. Depois, o regresso. A correria dos bois pela praia. A gritaria dos veraneantes a fugir à frente dos animais, na ânsia de ver chegar as redes e o pescado. As bóias, de cor alaranjada, davam aos pescadores a noção exata de onde era a boca da rede e de quando era necessário puxar com mais vigor, para não perderem, de forma inglória, o esforço de tanta labuta. E ele, o peixe, lá vinha a saltar na rede, com o seu dorso cor – de - prata. Aqui e ali, os miúdos, de gatas, apanhavam este ou aquele exemplar, que escapava por entre o emalhado da rede e fugiam do vozeirão do Balseiro, que os perseguia de boné a derramar – se - lhe para os olhos.
Seguia-se o leilão da faina, após a divisão por quadrículas, marcadas na areia. O Balseiro, com a barriga a subir a descer conforme ia licitando os cabazes, era o rei daquela aguarela colorida, de fortes pinceladas de matiz popular. Os homens do mar, muitos deles, voltavam para as pequenas courelas, que cultivavam na ajuda ao magro pecúlio que tinham para sobreviver e preparando-se para novas batalhas com o mar - pão.
E eu aqui estou. Sentado no areal. À minha frente, o mar revolto. No horizonte, um céu escarlate, de fim – de - tarde. Ao meu lado, majestoso de simplicidade, um barco. Dentro do barco, os remos. Dentro de mim, a saudade.
E as memórias …
Quito Pereira

17 comentários:

  1. Abuso da vossa paciência. Mas não é impunemente, que se passam seis décadas de vida, com Mira sempre presente. Primeiro a Praia de Mira, onde na infância e juventude me habituei a ver e a conviver com as gentes do mar. Mais tarde, como adulto, com os funcionários da Mata e que dela, todos os dias zelavam. Com uns e outros convivi,sem esquecer o Casal de S.Tomé, onde à roda de uma mesa nos juntávamos na matança do porco. Lembro o Abílio, e a sua história trágico - marítima pelos bancos da Terra Nova, onde não perdeu a vida por um fio. Os seus relatos dolorosos, dos dias e noites a salgar o bacalhau, metido nas catacumbas do navio, sob uma lâmpada mortiça. Na cara de menino, um rosto sofrido e a magro das muitas privações.
    Apelo, mais uma vez à vossa generosidade, mas Mira tem para mim tal significado, que nem sequer serei capaz de Vos prometer que não voltarei às minhas memórias ...

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  2. O Balseiro e as Varinas são incontornáveis figuras do mar.
    Já numa crónica anterior sobre a Praia de Mira do seu encantamento , o Quito, com a mesma qualidade textual, as tinha referido.
    O Balseiro é pau para toda a obra, comanda o barco, orienta o lançar e o levantar as redes, licita o peixe na praia. É o capitão respeitado que coordena a azáfama.
    As Varinas choram os entes perdidos, ajudam a reverter o pescado em pão para alimentar a família, tomam conta da casa e parem os filhos que hão de ajudar os pais na arte xávega .
    Recordo, nessa crónica anterior, a citação de Cesário Verde, que me ficou gravada na memória:
    “…as varinas de anca cheia…”

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    1. Cesário Verde, o escritor e poeta que cantava Lisboa e as suas gentes ...
      Boa memória Felício !!!

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  3. Também passei bons tempos de verão na Praia de Mira.
    Acampava-mos no parque de campismo.
    Não que o acampar fosse muito do meu agrado!Especilamente engalinhava com as casa de banho!
    Mas era compensado pelo facto de estarmos com a família e especialmente com os filhos, que adoravam poder andar por ali à vontade.
    O meu sogro era um apaixonado pelo parque de campismo e pela barrinha!
    Muitos domingos lá íamos na "carreira" do José Maria dos Santos" passar o domingo na Praia de Mira. Sim porque só tivemos carro muitos anos depois de casados!!AH! pois! A vida não era fácil. E havia domingos em que trabalhava até à 1 hora da tarde...e então lá ía de VELOSSOLEX até à Praia de Mira!!!
    Também tivemos a nossa conta nas dificuldades de então!
    E também ajudavamos a puxar os barcos que vinham da pesca!
    É um tempo para recordar!

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    1. Também passei tempos muito bons no parque de campismo. Os fins de tarde, o cheiro a sardinha fresca, o barulho do mar por detrás da duna...
      Os meus filhos adoravam ....

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  4. Obrigado,Quito.
    O Rui remata o excelente comentário citando Cesário.
    Lembro-me que,há cerca de 50 anos,homens mais velhos que eu diziam,quando olhavam para as raparigas:"Aquela tem anca parideira..."

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    1. Rui, não te esqueças de acender a candeia que hoje vai ou racha !!!

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  5. Das vezes que vi os pescadores e bois nesta correria, em Mira e também na Figueira, nunca imaginei que houvesse alguém que visse tanta poesia naquela azáfama! Mas há!... E esse alguém é o Quito, que consegue mostrar-me aquilo que os meus olhos não vêem!...
    Quem pintou vários quadros da Arte Xávega, foi o Zé Penicheiro!
    Obrigado Quito!

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    1. Obrigado Alf, pelo comentário amigo.
      Quanto às virtualidades do campismo, contigo, já sei que estamos conversados ...
      Abraço a "ambos os dois"

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  6. Obrigado Quito por fazeres com que a rapaziada fique com uma lágrima no olho de saudades de quem?Dos meus Pais do meu irmão dos amigos residentes e não residentes,das magnificas férias passadas e fins de semana ,onde a "roulotte" ía na Páscoa e regressava a Casa no S. Martinho.Penso ter ido ao mar umas 4 a 5 vezes,(com o mar bom)claro,numa das embarcações iguais ás da fotografia com um dos pescadores meu amigo,ainda não havia tractores para trazer as redes para terra enfim....estava aqui toda a manhã
    Mais uma vez obr bjs á São

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    1. Carlos
      De vez em quando, lá vou abrindo o livro das memórias e não são só as minhas ...
      Lembro-me bem da tua "roulotte". Imagino as farras !!!
      Desejo-te uma boa estadia pelo México. Boas férias ....

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  7. É como se de um filme se tratasse, de um filme que eu adorei mas de que já pouco me lembrava. Ou melhor, não sabia mas... lembrava-me.
    O Quito, em pinceladas firmes, repõe o quadro, obriga-me a lembrar e repassa-me a saudade.
    Obrigado, querido amigo.

    "Aqui e ali, os miúdos, de gatas, apanhavam este ou aquele exemplar, que escapava por entre o emalhado da rede e fugiam do vozeirão do Balseiro, que os perseguia de boné a derramar – se - lhe para os olhos."

    Numa bela manhã, o meu filho com os seus 7 ou 8 anos, apanhou um pequeno peixe que se tinha escapada do emaranhado da rede. Enfiou-o no seu pequeno balde de praia, previamente cheia de água, e trouxe-nos aquele troféu. Vivo, o pequeno carapau, rodopiava alegremente dentro do balde. Adivinhava-se que o pobre do peixe não iria resistir muito tempo ao carinhoso tratamento e lá convenci o meu filho que o melhor que ele tinha a fazer era devolver o peixito ao mar para que ele pudesse sobreviver.
    Assim foi e estou convicto que ainda hoje, algures pelos mares de Mira, andará um velho carapau com uma longa história para contar aos seus bisnetos...
    Quem sabe?

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  8. Obrigado, amigo Viana.
    Como disse atrás, as recordações não são apenas minhas. Ainda hoje te lembras do teu filho e o carapau no balde. "Ó tempo volta pr'a trás", assim dizia o fado do António Mourão. Velhos tempos que não voltam ...
    Um abraço

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  9. É verdade, Quito, as recordaçoes não são só tuas, mas, escritas por ti desta maneira, fazem-nos voltar 50 anos atrás e enchem-nos os olhas de lágrimas de saudade.
    Que bem escreves, como gosto de te ler.
    Um beijinho da Ló

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  10. Amiga Ló
    Não fazia ideia, que este texto pudesse mexer com alguns nós e o apreço que continuam a revelar pela Praia de Mira. Creio que este é a terceira vez que alinho uma palavras sobre a praia da minha saudade.
    Muito te agradeço, também, a colaboração ...
    Um abraço

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