quarta-feira, 28 de março de 2012

QUERIDO DIÁRIO...


Naqueles tempos de liceu, fazer um diário, foi moda a que grande parte dos adolescentes aderiu.
Não primavam pela imparcialidade nem pela objectividade. Eram mais um repositório anotado ao fim de cada dia, no recato do quarto, antes de dormir, que espelhava episódios vistos sob perspectivas próprias e individuais, raramente validadas inteiramente pelos factos.
Nele ficavam guardados sentimentos, desejos, sonhos, vontades próprias de jovens que tinham atingido a puberdade e começavam a descobrir a vida e as sensações próprias da idade.
Muitos desses episódios ocorriam no caminho que as alunas faziam desde o liceu feminino até ao bairro, no fim das aulas, acompanhadas em grupo pelos rapazes do liceu masculino, que desciam a ladeira do Cidral ou a dos Loios, em louca correria, a tempo de se integrarem no grupo das raparigas que, disfarçadamente, atrasavam a saída do liceu, para darem tempo a que eles aparecessem e as acompanhassem, num namoro virtual e platónico pleno de risinhos e de frases soltas que só os duplos sentidos permitiam desvendar.
Anos mais tarde, tive acesso aos diários da Rita e do Pedro:
Diário da Rita

Coimbra, 09 de Março de 1960
Estou muito feliz hoje! Amo o Pedro há muito tempo, sem que ele até agora tivesse demonstrado se também gostava de mim. Ele é muito tímido, talvez seja por isso.
Mas hoje fiquei com a certeza que ele também me ama. Ao atravessarmos a passagem de nível tropecei , cambaleei e caí para cima dele. O Pedro amparou-me, segurou-me nos braços, para eu não me estatelar na linha. Ficámos abraçados durante um bocado, olhámo-nos nos olhos, apaixonados.
Ele fez uma caricia na minha cara que me arrepiou toda e que ainda agora sinto.
Depois o resto da malta começou a gozar connosco a dizer que já eramos namorados. Corei, envergonhada, mas o Pedro foi um querido. Começou a correr atrás dos outros para me defender.
Foi o dia mais feliz da minha vida!

-------------------------------

Diário do Pedro

Coimbra, 09 de Março de 1960
Odiei este dia!
E agora a malta não se cala, na rua e no Café do Silva, sempre a chatearem-me dizendo que eu gosto da Rita. E que nós até já namoramos!
Deus me livre! Eu gosto é da Luisa, mas essa não me liga nenhuma.
Já reparei há muito tempo que a Rita gosta de mim. Tenho feito tudo para ela desistir. Mas hoje as coisas complicaram-se.
Estávamos todos a atravessar a linha do apeadeiro e ela tropeçou e caiu para cima de mim. Olhámos um para o outro durantes uns segundos mas eu desviei os olhos. Não me apetecia nada suportar o olhar arremelgado que ela me deitava.
Reparei que ela tinha colado na cara um resto da chiclete que estava a mascar antes de cair. Estendi a mão, tirei-o e deitei-o fora.
Ela deve estar a pensar que o que lhe fiz foi uma caricia, mas só foi por simples cortesia.
Como se não bastasse, a malta ria-se às gargalhadas e gritava que já havia mais um namoro no bairro. Corri atrás deles para dar um estalo no primeiro que conseguisse agarrar, para fazê-los parar com aquela cantilena que já me irritava.
Foi um dia horrível este. Talvez amanhã a Luisa me dê uma alegria.

Rui Felício

18 comentários:

  1. A Luísa não sei se vai dar alegrias ao Pedro, mas eu vou publicar isto n'a funda São.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha amada São Rosas,
      De há muito que sabes que o qie é meu é teu, na sua completa plenitude.

      Se tivesse um Diário, hoje ia escrever nele que tinha dialogado contigo, o que me encheu de felicidade.

      Eliminar
    2. Se eu não fosse lésbica, iria escrever o mesmo no meu diário.

      Eliminar
  2. Pela pena do Rui Felício, há um passado remoto vem ao nosso encontro.Ao encontro daquelas que se lembram do Liceu Feminino, igualmente chamado de Dona Maria. Também as descidas pelos Loios e pelo Cidral e de, quando em grupo, rapazes e raparigas, rumavam ao bairro.
    As raparigas, tinham mais apetência para fazer diários, do que os rapazes. Porém, alguns, tinham igualmente esse hábito.
    Nesta história bem imaginada, duas realidades em confronto, que se aproximam e se repelem, consoante o prisma pelo qual cada um dos jovens, sentiu o momento de uma proverbial queda na linha do comboio - no caso dela - e um incómodo incidente - no caso dele.
    O que ressalta desta espécie de conto bem urdido, é imaginação fértil do autor e do encadeado de pensamentos distintos, que ele próprio fabricou, assumindo -se no lugar dos personagens.
    Um conto, numa prosa simples e direta, em que intervém ainda um novo elemento - Luísa - o terceiro vértice de um triângulo amoroso de contornos indefinidos. Afinal, uma história de amores desencontrados, numa realidade transversal aos tempos de juventude e das paixões arrebatadas ...
    Gostei ...



    Sem artificialismos, este até parece um

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A história, ao contrário do o Quito diz, não é fruto de completa imaginação.
      Uma boa parte passou-se...

      Eliminar
    2. Imagino, imagino...

      Há muito que percebi que as tuas histórias têm um "clic" que determina o despertar da imaginação.

      Mais uma vez, procurando não ser influenciado, comentei sem ler os comentários dos nossos amigos.
      Lidos os comentários, o meu parece-me um disparate.
      Mas fica o disparate, que me perdoarás.
      Aquele abraço.

      Eliminar
    3. Se há algo que não pareça disparate neste mundo de loucos, são os teus comentários amigo Carlos! Sempre oportunos, sempre reveladores da compreensão da leitura que os suscita.
      E, neste caso, com um sentido de humor que cada vez mais se vai perdendo, numa sociedade causticada pelas agruras da vida...

      Eliminar
  3. Também me quis parecer que era um misto de realidade e ficção!
    Também por lá andei pelos lados do Infanta Dona Maria...mas só de longe!!!
    Só não descia os Lóios ou o Cidral,
    O meu percurso era pelos Combatentes ou pela rua do Teodoro.
    Ou então do Bairro atravessando a linha do comboio!
    Está um mimo esta este texto!

    ResponderEliminar
  4. DIÁRIO DO ZÉ

    Coimbra, 10 de Março de 1960

    Querido Diário,
    Terá sido hoje o dia mais infeliz da minha vida.
    A minha amiga Luísa, quase uma irmã, desabafou comigo a sua enorme mágoa.
    Tinha-lhe chegado aos ouvidos que o Pedro namorava com a Rita. Desde há muito tempo que eu sei, porque comigo se confidencia como a um irmão, que a Luísa está apaixonada pelo Pedro. Mas, pela sua timidez e pela timidez do Pedro, o namoro não se concretiza...
    Soube a Luísa que o Pedro se declarou, de uma forma espalhafatosa, para que todo o Bairro soubesse, apaixonado pela Rita.
    Foi em plena travessia da passagem de nível, à entrada do bairro, logo a seguir ao mal cheiroso urinol, que lhe veio a quebra da timidez...
    A minha querida amiga, quase irmã, Luísa não se conforma. Chora no meu ombro a sua mágoa e eu não choro porque, desde pequenino, aprendi que um homem não deve chorar.
    Mas, querido diário, a ti posso dizer que um gajo às vezes até tem o direito de chorar.
    Eu, como só tu sabes, gostava tanto da Rita!

    Nota para memória futura:
    Tive o cuidado de confirmar a veracidade dos factos relatados pela minha querida e desiludida amiga Luísa. Passei pelo "Café do Silva" e tudo se confirma.
    O Pedro está mesmo de namoro pegado com a Rita.
    Como disse, este foi o dia mais infeliz da minha vida.
    Vou tentar reagir a esta adversidade mas não vai ser fácil.
    Conto contigo, como meu confidente, como sempre.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O Carlos Viana também está por dentro da história. A revelação deste Diário do Zé demonstra-o. Mas a Luisa estava mal informada. A ocorrência não se deu naquela passagem de nivel do urinol, mas sim na do apeadeiro...
      O que não altera nada para o essencial, ou seja, para a paixão que o Zé nutria pela Rita.
      Mal sabia ele que a Telma andava louca de amores por ele. Pelo Zé.

      Daqui se poderia construir um romance de paixões cruzadas bem ao estilo dos anos sessenta em que os sentimentos eram camuflados perdendo-se por causa disso o estabelecimento de relações ajustadas.

      Eliminar
  5. Fui ler o conto que a São Rosas sugeriu.
    Era dificil conseguir melhor ilustração do que eu disse no comentário anterior.
    O que prova que a menina São Rosas é uma mulher atenta e sensivel.
    Coisa que, aliás,´eu já sabia...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ui! Sou tão sensível que até dói...

      Eliminar
    2. ... quando esfrego... mas não é bem dor... e se é, é boa...

      Eliminar
  6. Belo. Gostei do que escreveste.
    Como tudo era diferente, nós tão distantes delas, e elas, sem nós sabermos, a quererem estar tão perto...depois sempre havia os encontros nos bailes de garagens e no GRECO que quebravam as distâncias, e no doce embalo compassado duma música o gelo derretia na razão directa dos calores que se faziam sentir e a timidez evaporava-se. Um autêntico mistério, seria?

    ResponderEliminar
  7. Que belo prazer ler este fantàstico texto nesta tarde cheia de Sol aqui em Colmar!O Abilio disse a verdade:nos andàvamos distantes delas e elas sempre a quererem estar tao perto!
    Também fui assiduo "viajante" dessa caminhada pelos Loios.Tive as minhas preferidas.Que nunca souberam nada dos meus ardores!Cruzàvamo-nos duas vezes por dia!Nao tinhamos telemoveis.Nem computadores.Mas os rostos lindissimos que nos faziam sonhar,acompanhavam-nos nos propprios deveres que traziamos para casa!!

    Por mais incrivel que pareça, um dia apixonei-me por uma professora de Desenho do Liceu D.Maria. Chamava-se LAURA RAMOS! Era uma loura espetacular!Saida daqueles filmes italianos, onde o MARCELO MASTROIANNI era o perfeito sedutôr!Detalhe importante: tinha um OPEL KADETT!!!

    Hà alguém que a tivesse conhecido?

    Parabens RUI!

    ResponderEliminar