sábado, 27 de agosto de 2016

ENCONTRO DE GERAÇÔES" MEMÓRIAS" -"RUI FELÍCIO ANO 2010"

A ARTE É ORIGINALIDADE

O Pedro, finalista do curso de desenho e pintura das Belas Artes, foi incumbido pelo professor de pintar um nu feminino, segundo os moldes clássicos.

Preparou a tela, montou-a no cavalete, reuniu as tintas e os pincéis e colocou estrategicamente todo o material num recanto das águas-furtadas que tinha arrendado no Bairro Alto quando veio estudar para Lisboa.

Arrastou um velho sofá para debaixo da janela aberta no telhado, lugar onde
 incidiam os raios solares, que a poeira em suspensão ajudava a desenhar, como setas apontadas ao velho cadeirão.

Cobriu o sofá com 
um grande pano de cetim vermelho que a Escola lhe facultou.

Agora, só faltava encontrar 
o modelo que se dispusesse a posar durante uma ou duas semanas, naquele quarto andar esconso onde morava o Pedro.

Tentou a colaboração de uma das suas únicas três colegas de curso. Mas uma estava grávida e declinou o convite. Outra, tinha acabado de casar e o marido não iria concordar. A terceira não podia porque era mãe solteira e todo o tempo era pouco para assistir às aulas e tratar da filha.

Um colega sugeriu-lhe que tentasse encontrar
 alguém no corpo de baile de alguma das duas revistas em cena no Parque Mayer.

No fim do espectáculo a que assistiu nessa noite, pediu para falar, no camarim, 
com uma das bailarinas que tinha observado todo o tempo, dizendo-lhe que era aluno das Belas Artes e que era por isso que precisava de falar com ela.
Fazia-o em nome da conhecida solidariedade entre artistas.

Ela acedeu a ouvi-lo.
 Alta, corpo escultural, longos cabelos negros, olhos negros profundos, lábios grossos sensuais, pernas longas, o peito bem desenhado que o pequeno soutien mal cobria.

Durante quinze dias, diariamente, 
a bailarina subia às aguas-furtadas do Pedro, desnudava-se, deitava-se no sofá, o braço direito flectido, a mão apoiando o queixo, os cabelos negros espalhados pelo ombro e cobrindo parcialmente o seio esquerdo.

As coxas fartas abandonadas sobre o cetim vermelho deixavam entrever a mancha escura que lhe rodeava o sexo.

Concluída a obra, dados os retoques finais, o Pedro apresentou o trabalho na escola.
Tecnicamente estava perfeito, elogiou o professor.
E artisticamente 
era uma inesperada originalidade!

O professor pediu-lhe que cedesse a pintura à escola, para servir de exemplo aos futuros alunos.

Ainda hoje lá está exposta. A vistosa bailarina era um travesti…

Rui Felício
JUL2010

Nota: O episódio veio-me à lembrança quando há dias o Quito aqui aflorou o tema do Teatro de Revista, a que está indissociavelmente ligado o Parque Mayer.

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