Passado que não vivi ...
Recordo Terras de Basto. Recordo o Monte Farinha envolto
em neblina. Recordo no seu ponto mais alto, as povoações dispersas a perder de
vista. Recordo a Senhora da Graça na sua pequena Capelinha. Recordo a solidão
solidária. Recordo a paz. Recordo.
Ali, na pequena aldeia que me dá guarida, subo devagar a rua
estreita e íngreme, espartilhada por entre muros de granito, latadas e árvores
de fruto salpicadas pelas frescas orvalhadas da madrugada. Oiço o repicar do
sino que, ao domingo, chama os crentes para a missa, num badalar prolongado,
ora taciturno ora frenético, enquanto o gelo vai pingando, gota a gota, dos beirais
dos telhados. E as gentes aparecem, trajadas nos seus fatos domingueiros, para
ouvir a Palavra do Senhor.
Lá dentro do pequeno templo desconfortável e gélido repleto
de fiéis, o padre alto e esguio, de óculos graduados de lentes grossas e cabelo
cor de neve, com o seu paramento de mangas largas, tosse funga e espirra da aragem
agreste da manhã. Em ritual lento, desdobra cuidadosamente um lenço branco onde
assoa ruidosamente o nariz congestionado e roxo do frio, para depois saudar o povo de braços abertos, com os fiéis em silêncio e com o pigarro nas
gargantas que ecoa pelo templo, a comungar da paz interior que procuram em dias
de incerteza.
Ouve-se o pequeno coro das crianças do povoado com o maestro
à frente, rapaz ainda novo, de batuta e trejeitos enérgicos, balançando o corpo
ao som dos cânticos espirituais. Junto ao altar, em traje branco que lhe chega
aos pés, um adolescente pálido como um círio vai acolitando o cura no ritual da
cerimónia. Algumas idosas, fazendo-se acompanhar de pequenas sacolas vermelhas,
vão fazendo um peditório entre os presentes. Escuta-se o tilintar metálico das
moedas no silêncio reinante. Alguns, lançam displicentemente a oferta para
dento do pequeno saco. Outros, penetram-no de mão fechada, para que os vizinhos
não vejam o valor da dádiva entregue para ajudar a igreja.
Naquela manhã dominical, sentei-me num velho muro, debaixo de
um sol simpático e acolhedor. Era o sol dos tempos frios. Junto a uma fonte que
debitava uma água cristalina, olhei numa encruzilhada de caminhos, uma casa
Senhorial ainda de traça imponente. Eram evidentes os sinais de rendição à
ditadura do Tempo. Da entrada principal, recordo o brasão de armas encimando a
porta larga, já com traços da fadiga dos dias. E a escada ampla de acesso à
mansão, já enegrecida pela sua vida vetusta.
Disseram – me um dia, que ali vive gente. Talvez gente
modesta, longe do fausto e dos dias de glória. Perco-me a olhar a quinta, que é
propriedade da casa e que tem a marca tristonha da revolta dos campos quase
abandonados, onde um pónei irrequieto vai trotando sem amarras, num hino de
liberdade cúmplice com a natureza.
Olhando de novo a fonte de água fria e do pequeno regato que vai correndo a meus pés, tentei reconstruir o que teria sido o passado longínquo daquela casa nobre, com os assalariados dobrados sobre si próprios à força da enxada e da gadanha, a revolver os terrenos da quinta e a preparar os campos para as sementeiras.
Olhando de novo a fonte de água fria e do pequeno regato que vai correndo a meus pés, tentei reconstruir o que teria sido o passado longínquo daquela casa nobre, com os assalariados dobrados sobre si próprios à força da enxada e da gadanha, a revolver os terrenos da quinta e a preparar os campos para as sementeiras.
E, nos salões amplos, os cortinados de veludo e os
candelabros austeros, como austeras seriam as fotografias dos antepassados,
penduradas nas paredes em molduras robustas e douradas, onde proeminentes
bigodes ajudavam a compor um quadro de solenidade.
Também a donzela casadoira e sonhadora, de mãos frágeis, sentada
ao piano a afagar o teclado, divinizando Chopin numa pequena prece, na esperança
que o seu amado lhe aparecesse junto à janela do quarto, em noite de lua cheia.
A dama que, na sua charrete puxada por um cavalo negro no seu
trotar compassado, ostentava o seu vistoso trajar, na hora de honrar a missa
com a sua presença, e as vénias acentuadas dos povos da região que a conheciam
pela fama da sua generosidade.
Sobre tudo isto divaguei, num murmúrio do Tempo que passa. É
como se aquele quadro de arrebatador bucolismo que desfilava perante mim
naquela manhã dominical e tranquila me ajudasse a sonhar, no meu pensamento delirante e febril, um passado que não vivi.
Quito Pereira
Pois Quito desta vez escolheste uma tema que tem um iníco que gosto muito!
ResponderEliminarClaro em terras de Bastos que se quer melhor que umas postas de barrosã, enchidos e bom vinho?
Só depois disto se pode subir à Senhora da Graça!
Textos bem "urdido" no modo que sótu sabes escrever! Para mim que só leio jornais os teus textos permitem-me sair daquela rotina e ler uma boa prosa!.
Venham mais!
Divagações bucólicas que assaltam as mentes sensíveis nesta época de outono!
ResponderEliminarVamos lendo e reportamo-nos a tempos que só idealizam os que têm na caneta o condão mágico da escrita.
É o Quito!!!