quinta-feira, 17 de novembro de 2016

TRIBUTO A TERRAS DE BASTO ...




 Passado que não vivi ...

É sempre nesta fase do entardecer do ano, que procuro aconchego no rincão transmontano. Aquele rebuçado de reencontro com alguns amigos na casa de granito que nos acolhe, tendo o testemunho da carne barrosã, dos enchidos, dos vinhos cor de rubi e da lareira crepitante.

Recordo Terras de Basto. Recordo o Monte Farinha envolto em neblina. Recordo no seu ponto mais alto, as povoações dispersas a perder de vista. Recordo a Senhora da Graça na sua pequena Capelinha. Recordo a solidão solidária. Recordo a paz. Recordo.   

Ali, na pequena aldeia que me dá guarida, subo devagar a rua estreita e íngreme, espartilhada por entre muros de granito, latadas e árvores de fruto salpicadas pelas frescas orvalhadas da madrugada. Oiço o repicar do sino que, ao domingo, chama os crentes para a missa, num badalar prolongado, ora taciturno ora frenético, enquanto o gelo vai pingando, gota a gota, dos beirais dos telhados. E as gentes aparecem, trajadas nos seus fatos domingueiros, para ouvir a Palavra do Senhor.

Lá dentro do pequeno templo desconfortável e gélido repleto de fiéis, o padre alto e esguio, de óculos graduados de lentes grossas e cabelo cor de neve, com o seu paramento de mangas largas, tosse funga e espirra da aragem agreste da manhã. Em ritual lento, desdobra cuidadosamente um lenço branco onde assoa ruidosamente o nariz congestionado e roxo do frio, para depois  saudar o povo de braços abertos,  com os fiéis em silêncio e com o pigarro nas gargantas que ecoa pelo templo, a comungar da paz interior que procuram em dias de incerteza.

Ouve-se o pequeno coro das crianças do povoado com o maestro à frente, rapaz ainda novo, de batuta e trejeitos enérgicos, balançando o corpo ao som dos cânticos espirituais. Junto ao altar, em traje branco que lhe chega aos pés, um adolescente pálido como um círio vai acolitando o cura no ritual da cerimónia. Algumas idosas, fazendo-se acompanhar de pequenas sacolas vermelhas, vão fazendo um peditório entre os presentes. Escuta-se o tilintar metálico das moedas no silêncio reinante. Alguns, lançam displicentemente a oferta para dento do pequeno saco. Outros, penetram-no de mão fechada, para que os vizinhos não vejam o valor da dádiva entregue para ajudar a igreja.

Naquela manhã dominical, sentei-me num velho muro, debaixo de um sol simpático e acolhedor. Era o sol dos tempos frios. Junto a uma fonte que debitava uma água cristalina, olhei numa encruzilhada de caminhos, uma casa Senhorial ainda de traça imponente. Eram evidentes os sinais de rendição à ditadura do Tempo. Da entrada principal, recordo o brasão de armas encimando a porta larga, já com traços da fadiga dos dias. E a escada ampla de acesso à mansão, já enegrecida pela sua vida vetusta.

Disseram – me um dia, que ali vive gente. Talvez gente modesta, longe do fausto e dos dias de glória. Perco-me a olhar a quinta, que é propriedade da casa e que tem a marca tristonha da revolta dos campos quase abandonados, onde um pónei irrequieto vai trotando sem amarras, num hino de liberdade cúmplice com a natureza. 

Olhando de novo a fonte de água fria e do pequeno regato que vai correndo a meus pés, tentei reconstruir o que teria sido o passado longínquo daquela casa nobre, com os assalariados dobrados sobre si próprios à força da enxada e da gadanha, a revolver os terrenos da quinta e a preparar os campos para as sementeiras.

E, nos salões amplos, os cortinados de veludo e os candelabros austeros, como austeras seriam as fotografias dos antepassados, penduradas nas paredes em molduras robustas e douradas, onde proeminentes bigodes ajudavam a compor um quadro de solenidade.

Também a donzela casadoira e sonhadora, de mãos frágeis, sentada ao piano a afagar o teclado, divinizando Chopin numa pequena prece, na esperança que o seu amado lhe aparecesse junto à janela do quarto, em noite de lua cheia.

A dama que, na sua charrete puxada por um cavalo negro no seu trotar compassado, ostentava o seu vistoso trajar, na hora de honrar a missa com a sua presença, e as vénias acentuadas dos povos da região que a conheciam pela fama da sua generosidade.

Sobre tudo isto divaguei, num murmúrio do Tempo que passa. É como se aquele quadro de arrebatador bucolismo que desfilava perante mim naquela manhã dominical e tranquila me ajudasse a sonhar, no meu pensamento  delirante e febril, um passado que não vivi.
Quito Pereira
                 

2 comentários:

  1. Pois Quito desta vez escolheste uma tema que tem um iníco que gosto muito!
    Claro em terras de Bastos que se quer melhor que umas postas de barrosã, enchidos e bom vinho?
    Só depois disto se pode subir à Senhora da Graça!
    Textos bem "urdido" no modo que sótu sabes escrever! Para mim que só leio jornais os teus textos permitem-me sair daquela rotina e ler uma boa prosa!.
    Venham mais!

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  2. Divagações bucólicas que assaltam as mentes sensíveis nesta época de outono!
    Vamos lendo e reportamo-nos a tempos que só idealizam os que têm na caneta o condão mágico da escrita.
    É o Quito!!!

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