Sempre que maio entra no calendário da Roda do Tempo, Coimbra desperta desse lago adormecido que é a cidade deitada sobre o leito do Mondego. É tempo de Queima das Fitas. É tempo de arejar capas e batinas. É tempo de agitar fitas coloridas de acordo com as Faculdades frequentadas por cada um dos estudantes. É tempo de gozar até à última gota uma época da existência que não voltará. Essa fatalidade do rodar dos dias e dos anos, que transformará sem defesa a Serenata Monumental na Escadaria da Velha Sé numa única palavra: Saudade.
Da saudade de uma cidade que ficou para trás no dia da
partida, com a Torre a espreitar por cima do casario, envolvida numa bruma como
se já fosse passado. Dos amigos de curso que também partiram para locais
distantes, agora que o combate pela vida ganha outros contornos. Vasculhando
neste emaranhado de sentimentos, encontraremos uma outra palavra forte na sua
dimensão universal - afeto.
Sentado na esplanada de um conhecido restaurante na margem
esquerda do Mondego, vou olhando o carrossel de carros e famílias que, sob um
sol simpático, passeiam despreocupadamente pela cidade universitária. Crianças
e pais vagueiam e não é difícil perceber que muitos deles têm como destino esse
apetecido local de Coimbra para os mais jovens e também adultos – o Portugal
dos Pequeninos. Nesse cadinho de emoções, em que os mais pequenos têm a maior
fatia, ao encontrar Portugal condensado num aprazível jardim, pais e filhos,
tios e sobrinhos, avós e netos, têm como denominador comum esse nobre sentimento
de partilha exclusivo dos seres sensíveis - afeto.
Ali, junto à Ponte de Santa Clara, vejo vir ao longe um
magote de gente jovem e menos jovem. Chama-me a atenção o facto de envergarem
coletes amarelos. De boné na cabeça, na defesa do sol inclemente, alguns trazem
consigo um bordão. Passam por mim em passo lento e percebo que são caminhantes
de Fátima. Olho os seus rostos resolutos que têm uma missão a cumprir.
Pressinto-lhes as pernas cansadas e pés doridos da caminhada. Dou comigo a
pensar de onde virão, já que lhes adivinhei sem dificuldade o destino - A Cova
da Iria.
Fátima é Fé. Mas Fátima também é o povo na sua essência. Não
sendo eu particularmente devoto deste tipo de massificação, compreendo as
gentes. Tenho por todos estes caminhantes da estrada o maior respeito. Nunca
por mais letrado que fosse e que não sou, estribado numa qualquer elite
intelectual ou grau académico, seria capaz de ostentar uma indisfarçável
soberba, menosprezo, ou até desdenhar de compatriotas que apenas têm como
“culpa” o seu inquebrantável CRER em algo que está para lá da dimensão terrena.
E, nesta gente que vou olhando em cortejo pela beira dos caminhos, apoiando- se
uns nos ombros dos outros quando a cabeça já não comanda as pernas, encontro
apenas uma palavra que também estará para lá da dimensão racional, neste Fenómeno
de milhares de almas e de inspiração Divina - afeto.
Saio da esplanada onde fui meditando em tudo isto e entro num
restaurante. Naquele almoço barulhento de muitos antigos militares à volta de
uma mesa, eu sou uma carta fora do baralho. Apenas um amigo que lá pelas bandas
de Catió combateu com aqueles seus antigos camaradas de armas, me fez ir ao seu
encontro. Com eles confraternizei e partilhei das suas preocupações. Dos que
falaram dos filhos emigrados na Turquia com visível preocupação. Dos que
falaram de depressão, porque já com idade avançada ficaram sem emprego. Dos que
nos versos escritos e ditos, vão espantando a solidão. E daquele homem pequeno de
óculos pendurados na ponta do nariz, que tirou a viola de um estojo e a limpou
com um pano de flanela, como quem trata com desvelo um filho ou um neto. O fado
ouvido em silêncio e cantado com emoção e aos tropeções, foi o epílogo daquele
dia festivo de celebração neste mês de maio.
Então, partiram com abraços sentidos, promessas de voltar e
números de telemóvel escritos apressadamente em guardanapos de papel, porque o
comboio para a Guarda não espera naquele dia de muitas rotas distintas: Lamego,
Leiria, Celorico de Basto, Guarda, Pinhel, Santo Tirso, Lisboa entre outros
destinos. Naquele momento de festa em redor da mesa, comemorava-se os quarenta
e nove anos do regresso da guerra. Que o mesmo é dizer, comemorava-se a
sobrevivência.
E naquela despedida de gente de cabelo grisalho, apenas descobri
com a clareza da água límpida de um regato, uma simples palavra mágica despida
de qualquer falsidade ou hipocrisia, em tempo de reencontro de cariz militar de
tempos remotos - afeto.
Quito Pereira
Tanto afeto neste "Maio de afetos"!
ResponderEliminarBom de ler e de refletir, Quito.
Saudade, afecto, entreajuda, emoção, amizade: o Quito com a sua escrita trouxe até nós um pouco de tudo.
ResponderEliminarFolgo ver-te restabelecido, Chico. Um abraço !
EliminarObrigado, Quito. Já passou. A alegria do futuro é que conta.
EliminarAbraço.
Não fora um encontro marcado com um companheiro das campanhas de guerra na Guiné e este texto, dividido em episódios tivesse sido postado.
ResponderEliminarMas aceitou o convite do amigo, em princípio para matar saudades e lá foi para lá da ponte de Santa Clara sentar-se na esplanada do Restaurante Alfredo.
Conversando mas sem deixar de dar uma olhadela ao que o rodeava.
Olhou para a Torre da Universidade e logo se apercebeu que estão a decorrer a festa dos estudantes a que chama a Queima das Fitas. Serenata Monumental que abre lugar a saudade e a afetos entre os que iniciam e os que acabam o curso!
Em frente repara nos que passeiam, pais e filhos que também espalham afetos nos jardins ou mais à frente no Portugal dos Pequenitos...
É também lugar privilegiado para ver passar os peregrinos a caminho de Fátima dos que sendo crentes levam devoção a nossa Senhora e afetos a todos os que partilham a mesma fé.
Por fim compartilhou o almoço com os camaradas do seu amigo e mais uma vez notou que nestas reuniões de camaradas de armas, os afetos entre todos são sempre a nota mais dominante.
Afectuosamente obrigado pelo excelente texto!
O escritor é um observador.
ResponderEliminarPormenores que ao comum dos mortais passam despercebidos, não escapam a quem nutre paixão pela escrita.
Sejam eles jocosos, eróticos, de ódio, de violên,cia, de imagem, detalhes escultóricos, musicais ou singelas expressões da Natureza.
A marca de água da escrita do Quito Pereira é, contudo, a dos sentimentos, e de entre estes, a afectividade.
Veja-se como num pequeno periodo de tempo, ele abarcou uma miscelânea de afectos que muitos teriam subestimado.
Se juntarmos a este dom de observação, a técnica literária que o Quito possui, perceberemos como o resultado é um texto que nos induz à reflexão, que nos faz ver aquilo que, de outra forma, nos teria escapado.
Maio foi o tempo escolhido.
Mas poderia ter sido noutro tempo qualquer.
Rui Felicio