Caminho para nascente ao encontro do passado. De um Tempo
remoto disfarçado de presente. Olho a planície silenciosa, aqui e ali invadida
por aglomerados de pinheiros e eucaliptos que resistiram à fúria devastadora do
lume. Ao longe, diviso pequenos lugares de casas brancas estendidas ao sol de
outono, rendidas ao passar dos dias e dos anos. Vou rodando em círculo no meu
carro, num labirinto de estradas ausentes de gente e de vida, até que uma
pequena placa indicativa plantada na berma do caminho, indica-me que cheguei ao
meu destino de viagem.
Não fui ali porque quis. Fui porque as circunstâncias assim o
exigiam e o coração também. Perdi um amigo de longos anos.
Com o rodado do carro a trepidar na calçada, parei. Saí, bati
com a porta, olhei a torre da modesta igreja e o sino. Lá dentro, na penumbra
do pequeno templo, vi um homem idoso vestido no rigor dos seus paramentos – era
o padre. Com um discurso formatado e sem grandes rasgos de retórica, lá levou a
homilia a bom porto.
Depois o sino tocou e o cortejo partiu lento. No regresso de
me despedir do meu amigo, percorri a pé a rua empedrada. Ali, do lado esquerdo,
sentada num banco de madeira, vejo uma idosa vestida de negro. Cumprimento-a e
ela responde-me com o afeto de quem dá as boas vindas a um forasteiro. Depois
falou-me da sua vida naquela pequena aldeia onde vive sozinha. Lembrou o marido
que partiu há quatro anos e do filho que está longe, lá para as bandas da
capital. E lastimou-se da sua solidão. Com o bordão que lhe repousa no regaço,
aponta-me a sua casa ali do outro lado da rua. Uma casa simples e bem cuidada.
Enquanto fomos dialogando, apareceu um homem. Era ainda jovem e muito falador.
Sem rodeios, foi-me falando da região que conhece bem e dos trabalhos temporários
que já teve aqui e ali, fosse na agricultura, na construção civil ou numa
carpintaria lá mais para os lados da serra. Mas lá, naquele lugar, estão as
suas raízes – fundas raízes – que o fazem ser feliz. Enquanto fala, vai batendo
com o punho cerrado na porta de uma vizinha que não acode ao chamamento. Então,
em bicos de pés, espreita pelo postigo enquanto continua em voz alta a clamar
pela presença de quem se terá ausentado, talvez para regar as hortas ou dar de
comer ao “vivo” no curral. Perguntei-lhe então, em jeito de despedida, qual o
nome daquela rua. Disse-me que era a Rua de São Pedro, onde apenas habitam
quatro pessoas. Aqui, nesta rua, somos uma família - disse-me. Despediu-se de
mim com um sorriso de cortesia. Apertámos a mão e parti, meditando naquele
pequeno universo cósmico de uma modesta rua e de quatro almas que sobrevivem de
uma solidariedade partilhada, num futuro que não existe naquele vácuo do Tempo.
Resta apenas a crença férrea de quem acredita na utopia da Terra Prometida, de que
o cura vai falando anos a fio na missa dominical a que acorrem com fervor ao
toque metálico e prolongado do sino.
Lembrando o amigo que ali deixei para sempre e olhando a
torre sineira agora muda e envolta no marasmo dos dias, abandonei aquele lugar
na procura do meu berço coimbrão. Para trás, ao declinar do sol, ficou uma Beira Baixa
perdida e esquecida na encruzilhada de todos os seus encantos, desencantos e
mistérios.
Voltarei.
Quito Pereira
Adérito Joaquim de Jesus Dias, nasceu na Beira Baixa. Licenciou-se em História pela Universidade de Coimbra. Viajar e escrever, eram as suas grandes paixões. Um dia, deslumbrou-se pela beleza das mulheres de Tallin e sobre elas versejou. A sua escrita e o amor à sua terra, valeram-lhe o reconhecimento público da Câmara Municipal de Vila Velha de Rodão.
ResponderEliminarMorreu num dia destes de outono, se calhar como quereria.
Foi meu amigo muitos anos e um dia casámos filhos, porque a vida tem por vezes destas surpresas.
Escrevia com o pseudónimo de Pedro da Raia em homenagem às suas raízes.
Deixo-lhe este texto de homenagem e de despedida.
Que estejas em paz meu amigo, repousando na Beira que tanto amaste e é a tua.
Quito Pereira
A rua de São Pedro um título para mais um belíssimo texto do Quito.
ResponderEliminarO falecimento de um seu grande amigo levou-o às terras da Beira Baixa para o acompanhar até à sua última morada-um amigo que partiu, mas um texto que em sua memória nasceu na esteira de tantos outros que através deste blogue nos foram proporcionados!
No comentário soubemos que este seu amigo foi escritor de mérito com belos textos que publicou em livros! E tu Quito porque não segues o seu exemplo e que muitos de nós não se conformam de estes textos também não sejam publicados em livro! Os bons exemplos devem ser seguidos!
Assim nos vamos despedindo..
ResponderEliminarA rua de São Pedro com quatro habitantes que são uma família!
No bulício da cidade nem damos conta de certas realidades.
Linda homenagem a um homem que contigo partilha o gosto pela escrita.