Um passado ...
Um repartir de afetos. De Lagos do Infante Dom Henrique, à
estátua solene de Amato Lusitano. Do mar salgado e amplo que se alarga até à
linha do infinito, ao calor e ao cantar das cigarras num horizonte de fogo.
Duas realidades distintas. Mais de quatrocentos quilómetros
separam o Atlântico algarvio sereno e azul, dos mistérios da Estrela e do
Moradal em final de tarde, a convidar à reflexão sobre os caminhos da Vida.
A cidade beirã resiste às altas temperaturas de um sol
escaldante de verão. A cidade está desfalecida de ritmo e apenas as sombras das
árvores que povoam os espaços públicos, são um oásis a quem procura defender-se
da canícula. Aqui e ali, alguns repuxos de água límpida tentam amenizar a calma
sufocante.
Meto o carro no subterrâneo fresco do Parque de
Estacionamento da “Devesa”. Subo as escadas e fico cego pela claridade que
tomba sobre os telhados das casas antigas, que se alinham como soldados na
parada de um quartel. Deambulo por aquele espaço. Alguns estabelecimentos de
cafetaria e esplanadas, dão alguma cor ao marasmo dos dias. O “Docas”, nome
estranho a lembrar as delícias da frescura dos rios ou do mar, alberga alguns
clientes que dentro do estabelecimento gozam da presença de ar condicionado.
De novo pisando terrenos que me são familiares, vou
tricotando a vida ao sabor de recordações. De voltar a reencontrar gente que me
saúda. Que ama a sua cidade e as suas raízes de uma Beira profunda.
Ao volante do carro, desço a Avenida 1º de Maio e descubro
esta ou aquela figura carismática da cidade. Gente para quem a vida foi uma
cautela de lotaria em branco. O Godinho sobe a avenida em passo apressado como
sempre foi seu timbre, de camisa empinada pelo seu ventre obeso. Fala sozinho e
ri-se nos seus impenetráveis pensamentos. Mais abaixo, esbarro com o companheiro da mulher da tabacaria.
Passa os dias encostado a um muro em frente do estabelecimento, a perna
esquerda fletida e a sola do sapato ferrada contra a parede branca e nua, fumando cigarro atrás de cigarro. Tem a tez
roxa e gaba-se de beber dez cálices de Vinho do Porto ao pequeno - almoço.
Ela,
a mulher, de rosto triste que nunca vi sorrir, mal se movimentando no
compartimento exíguo atafulhado em mercadoria, vai vendendo notícias plasmadas
nos jornais com títulos sensacionalistas. E há sempre quem compre. Tudo isto
observei da janela do meu carro, como um filme de que vi a antestreia já muitos
anos passados.
Estou cansado. Remeto-me ao silêncio da minha casa. Olho o
fogão de sala e a cinza e que ainda se acumula no seu interior. Cinza que são restos
do passado. De um passado de memórias que muitas vezes desfilaram perante mim,
no rubro incandescente de um tronco de azinho, na lareira acolhedora dos frios
de inverno.
Amanhã partirei. Castelo Branco fica para trás, aguardando o
meu regresso. Numa tarde de outono prometo voltar. Talvez acenda a lareira,
para me confrontar com outras memórias e realidades. Agora tenho um compromisso
– Coimbra, o Mondego e o Choupal esperam por mim.
Quito Pereira
mais um bom texto que desta vez passa pelas lembranças vividas no triângulo mar de Lagos, campos das Beira Serra e...finalmente o regresso à cidade de Coimbra.
ResponderEliminarAs duas primeiras não ficarão esquecidas e a sua presença se fará com alguma regularidade.
Um abraço