Há duas semanas passei pela A24, no troço que liga Bigorne a Lamego, e recordei-me de quando não havia ali estrada alguma e, para passar essa parte da serra, era preciso conhecer bem os carreiros que permitiam atalhar a pé, evitando grandes voltas. Hoje, a autoestrada é uma cicatriz na crista do monte e quem lá passa não conhece muitos dos dramas que ali se viveram. Um deles foi-me contado pelo meu pai, nascido e crescido num vale dessas serras.
Os montes da Camba, na serra da Póvoa, eram lugares de lendas e fontes de exagero. De lá vinham as nuvens carregadas que se condensavam na serra de Montemuro e antes de chegarem à zona de Melcões largavam tudo quanto tinham, abrindo barrancos onde cabiam carros de bois. Quantas vezes a quinta do Pereiro viu ir com a enxurrada o milho de mais de 50 taleigos e, como não há ida sem vinda, viu chegar a fome que levou muitos da aldeia à procura de trabalho nas quintas do Pinhão.
Era uma serra de magia, que escondia muito do outro lado. Para alguns rapazes, escondia as belezas prometidas das moças casadoiras de Pretarouca ou de Peixeninho. O Zé Claro não era exceção: tinha caídos de amores pela Rosália de Peixeninho e, como fiel amoroso, todos os domingos atravessava, então, a serra da Camba e um pouco depois da hora de almoço estava já no largo da igreja, onde as moças se reuniam, e ele, disfarçando menos do que ela, conseguia chegar à fala num intervalo de desatenção da mãe, pelos vistos já ensaiado em casa. A cachopa gostava dele e à mãe não desgostava, até porque ela tinha mandado a Meijinhos um primo almocreve que, a título de querer trocar umas taleigas de pão por duas cestas de fruta, tinha sabido do rapaz quanto era necessário. Soubera que ele era trabalhador, amigo dos pais e responsável pela educação das irmãs mais novas. Com isso tudo, a mãe da Rosália sabia que ele era uma boa cepa onde deixaria a filha enxertar os frutos da vida e a sobrevivência da família. Por isso mesmo é que fingia as distrações para o Claro acertar as coisas com a moça.
Os domingos dos dias grandes ofereciam uma tarde larga em que os apaixonados se viam e falavam por algumas horas. Por vezes havia bailes de concertina ou de gaita de beiços e muitas vezes ela foi autorizada a dançar com ele. Dançando num pé e falando noutro chegaram então a compreender o mundo de coisas mais sérias e falaram do futuro, dos filhos que teriam, dos campos que o Zé Claro cavaria e das cepas de vinho que o pai dela lhe deixaria colher. Casariam no outro verão, por alturas das festas de S. Tomé.
Veio o outono e o inverno, as tardes pequenas chegaram, e depois das 3 horas de caminho até Peixeninho, poucas horas restavam de enleio, pois no regresso teria de contar outras três, parte delas já de noite. E se de noite todos os gatos são pardos, no caso dele eram os lobos que uivavam do mesmo modo. Domingo após domingo, sentia o coração pequeno quando, depois da ponte de Reconcos, tinha de passar os montes da Camba e, então, começar a descer para a sua aldeia. Parecia também que cada domingo os lobos uivavam mais perto. Até parecia que havia fome na serra e isso tornava-os afoitos. Apesar disso, confiava na navalha que levava no bolso da samarra e também no pau de cana-da-Índia, com uma lâmina no topo e um coto de metal pesado e inteiriço na base, que era capaz de abrir a cabeça a um boi
. Assim, quando, naquele início de noite de neve e frio a matilha o acossou já na descida da Portelada, subiu num penedo e, com a navalha numa mão e batendo com o cajado nas pedras de seixo para fazer faíscas, foi resistindo quanto pôde.
A imaginação dos que cá ficam quando falam dos que partem é sempre benevolente e laudatória. Por isso, quando na segunda, de madrugada, o povo partiu à sua procura e apenas lhe encontrou os pés dentro dos sapatos, algumas pessoas afirmavam que o coitado lutara bravamente e com a vara tinha feito tantas faíscas que até parecia que tinha trovejado nos montes da Camba
Antonino Silva-Coimbra
Era uma serra de magia, que escondia muito do outro lado. Para alguns rapazes, escondia as belezas prometidas das moças casadoiras de Pretarouca ou de Peixeninho. O Zé Claro não era exceção: tinha caídos de amores pela Rosália de Peixeninho e, como fiel amoroso, todos os domingos atravessava, então, a serra da Camba e um pouco depois da hora de almoço estava já no largo da igreja, onde as moças se reuniam, e ele, disfarçando menos do que ela, conseguia chegar à fala num intervalo de desatenção da mãe, pelos vistos já ensaiado em casa. A cachopa gostava dele e à mãe não desgostava, até porque ela tinha mandado a Meijinhos um primo almocreve que, a título de querer trocar umas taleigas de pão por duas cestas de fruta, tinha sabido do rapaz quanto era necessário. Soubera que ele era trabalhador, amigo dos pais e responsável pela educação das irmãs mais novas. Com isso tudo, a mãe da Rosália sabia que ele era uma boa cepa onde deixaria a filha enxertar os frutos da vida e a sobrevivência da família. Por isso mesmo é que fingia as distrações para o Claro acertar as coisas com a moça.
Os domingos dos dias grandes ofereciam uma tarde larga em que os apaixonados se viam e falavam por algumas horas. Por vezes havia bailes de concertina ou de gaita de beiços e muitas vezes ela foi autorizada a dançar com ele. Dançando num pé e falando noutro chegaram então a compreender o mundo de coisas mais sérias e falaram do futuro, dos filhos que teriam, dos campos que o Zé Claro cavaria e das cepas de vinho que o pai dela lhe deixaria colher. Casariam no outro verão, por alturas das festas de S. Tomé.
Veio o outono e o inverno, as tardes pequenas chegaram, e depois das 3 horas de caminho até Peixeninho, poucas horas restavam de enleio, pois no regresso teria de contar outras três, parte delas já de noite. E se de noite todos os gatos são pardos, no caso dele eram os lobos que uivavam do mesmo modo. Domingo após domingo, sentia o coração pequeno quando, depois da ponte de Reconcos, tinha de passar os montes da Camba e, então, começar a descer para a sua aldeia. Parecia também que cada domingo os lobos uivavam mais perto. Até parecia que havia fome na serra e isso tornava-os afoitos. Apesar disso, confiava na navalha que levava no bolso da samarra e também no pau de cana-da-Índia, com uma lâmina no topo e um coto de metal pesado e inteiriço na base, que era capaz de abrir a cabeça a um boi
. Assim, quando, naquele início de noite de neve e frio a matilha o acossou já na descida da Portelada, subiu num penedo e, com a navalha numa mão e batendo com o cajado nas pedras de seixo para fazer faíscas, foi resistindo quanto pôde.
A imaginação dos que cá ficam quando falam dos que partem é sempre benevolente e laudatória. Por isso, quando na segunda, de madrugada, o povo partiu à sua procura e apenas lhe encontrou os pés dentro dos sapatos, algumas pessoas afirmavam que o coitado lutara bravamente e com a vara tinha feito tantas faíscas que até parecia que tinha trovejado nos montes da Camba
Antonino Silva-Coimbra
Eu tive uma experiência semelhante, um pouco mais a leste. Em 1972 fui colocado como professor de matemática na secção de Vila Nova de Paiva da escola secundária de Lamego. Uma vez por mês tínhamos de nos deslocar à sede para receber o ordenado. Íamos pela rota de Aquilino até Moimenta da Beira, largos quilómetros a contornar a serra de Leomil. Até que um colega descobriu uma estradeca pela serra da Nave, que nos levava diretamente do Touro até Tarouca. Se for por lá hoje, sou capaz de não dar com essa rota.
ResponderEliminar