quarta-feira, 3 de julho de 2019

O BECO ...




Juncal do Campo ...

Hoje, sinto-me estranhamente bem. O cadeirão confortável e o sol pleno que entra pela janela larga da sala lavam-me a alma. Quando com as chaves a tilintar rodei a fechadura da casa fechada que me esperava, escancarei de novo a porta de um passado. Olho as fotografias semeadas pelos móveis com retratos de dias felizes. Depois, num dos quartos, assomo à varanda e olho as serras ao longe. São as minhas serras. Com elas convivi diariamente, quando, nas manhãs de janelas abertas de par em par, havia um pacto mútuo de silêncio cúmplice entre mim, a Estrela e o Moradal. São montanhas austeras na sua beleza perpétua. E ensinaram - me que a intemporalidade é só privilégio da natureza. Elas percorrerão os séculos e eu, simples mortal, reduzo-me à minha insignificância de as venerar. Havia nesta convivência diária algo de transcendente. Talvez um qualquer Ente Superior se nos revele todos os dias, materializado nas montanhas grandiosas e nos vales profundos. E no cantar dos rios de águas límpidas e ainda virgens da fúria devastadora do Homem.

Vista daqui, deste planalto, a aldeia é um mar de oliveiras. E, lá no fundo, entre caminhos estreitos e vielas apertadas chegamos ao fundo da povoação. Estacionado o carro, vou olhando o silêncio. Não se vê vivalma, até que uma porta em madeira maciça se abre a gemer nos gonzos. Da casa modesta mas bem conservada, sai uma rapariga nova com um alguidar à cabeça balançando as ancas roliças e que se apressa a levar a roupa para o lavadouro público. Depois regressa em andar ligeiro já sem o carrego que levava e fecha a porta de casa com estrondo. De novo o silêncio. De novo o marasmo dos dias. Do lado esquerdo da rua existe um beco. Uma garganta estreita, que tem um caminho que parece levar-nos às planícies do infinito. De lá, daquele beco, vejo aparecer um homem. Veste pobremente e traz na cabeça um boné vermelho com um emblema de um clube desportivo. Senta-se num banco e vai - me olhando perplexo. Um estranho por ali é sempre algo de novidade e dá azo a muitas especulações. Mas reconheço- o e sei que infelizmente nem vai ter a oportunidade de dialogar com ninguém, porque é mudo. Já tem uma idade que não aparenta e faz-se perceber gestualmente. Porém, os que com ele convivem há tantos anos, entendem-no como se ele falasse. Satisfeita a curiosidade, abandona o local e desaparece sem deixar rasto. O Mário é mais afoito. Vem direito a mim e com o seu rosto comprido e um bigode grisalho, quase mete a cabeça dentro do habitáculo do carro. A conversa é calorosa mas negativa. Porque tudo ali é negativo. Fala-me a cambalear, com uma doença degenerativa que o pôs naquele estado. Recordou o Raimundo, seu pai, e os valores da solidariedade e da honradez que ele lhe transmitiu. Incentivei-o com palavras de conforto, enquanto aquele beco ia ganhando algum alento. Sentados no degrau de uma porta, os moradores falam agora da vida e das ambições que não têm. Alguém conhecido faz então questão que eu traga uma saca de laranjas colhidas num quintal. Agradeci e depois parti, com a convicção profunda de que por momentos naveguei naquele microcosmos de afetos e que atraquei num beco da vida.
QP        

8 comentários:

  1. No teu texto só percebo que existem os extremos. O "nem lá" e "nem cá", para, assim, se manter o equilíbrio de tudo.
    Em algum lugar, nos deparamos com pessoas diversas e adversas. Elas nos servirão de parâmetros para medirmos e refletirmos sobre nós, nossas vidas, nossas particularidades.
    Entendo-as como necessárias. Todas as situações e condições são, de alguma forma - para alguém -, necessárias. Se tiradas alguma coisa dessa rotina, aparentemente cansativa e sem rumo, de pronto virão as queixas. Far-lhe-ão falta. É como extirpar-lhe a essência da vida.
    Muitos até são felizes assim.

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  2. Sim, são felizes assim. O tal microcosmo de afetos. Vizinhos que se ajudam e têm o seu próprio universo rural. Gente boa que conheço bem. Os mais novos partiram e os outros, os mais velhos, ficaram. Não há extremos. Apenas um povo no seu todo, mas cada um com as suas crenças e formas de viver. Felizes sim na matriz de vida que receberam dos antepassados.

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  3. Um aperto no coração é o que sinto quando dou por mim a imaginar as vidas daquela gente que as palavras escolhidas como setas do Quito Pereira.

    Um homem mudo, um outro que a doença grave inutilizou os movimentos livres, outro ainda que optou pelo silêncio...

    Mas são aparências que enganam um citadino como eu habituado a medir a felicidade por parâmetros que a sociedade de consumo engendrou erradamente.

    Porque,ao contrário do que pensamos, a felicidade alcança se pelo modo de vida de simplicidade que a ambição destrói.

    Afinal aquelas gentes são certamente mais felizes que aqueles que,numa vida infrene, labutam para aumentarem o pecúlio chegando ao fim da vida sem dela terem tirado proveito.

    Um abraço Quito

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  4. Obrigado, Rui! A amarrar nos 70 anos de existência, faço um balanço da vida. Olhando o passado, concluo que fui um homem "vivido" no bom sentido da palavra. Andei numa frente de guerra, fel que também provaste, e conheci e conheço a realidade citadina e rural. As expectativas e motivações são diferentes. No universo rural, há quem se sinta realizado com um "chão de 50 oliveiras ou uma horta com poço para regar, do que a ter uma casa numa estância balnear ou um carro de alta cilindrada. Motivações antagónicas como diferentes são os conceitos de realização pessoal e de felicidade.

    Um abraço, Rui ...

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  5. Disseste por diferentes, melhores e mais certeiras palavras aquilo que eu quis dizer.


    Estás cada vez mais aprimorado na tua escrita.

    Que saibamos viver a felicidade que a experiência de longa vida já nos aportou.

    Bem hajas Quito

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  6. Visitar Castelo Branco de quando em vez, sentar-se num cadeirão olhhando pela vidraça o Moradal, só podia trazer lembranças dos tempos idos, com caminhos e veredas e...Becos.
    Neles relembrou personagens que o marcaram.
    Tudo numa escrita escorreita, singela e autêntica que nos deixa pensativos em como muitas regiões rurais do nosso país vão infelizmente ficando...

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  7. Obrigado Fernando e até breve. Um abraço ...

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