Os dias cinzentos, aqueles que nos entristecem, fazem parte da nossa existência. Sem eles, não saberíamos quão gratificantes são os dias coloridos de sol, os dias bons de felicidade. No dever e haver da vida de cada um, convém que o saldo seja positivo para o lado dos dias bons; contudo, não é menos verdade que a nossa existência é feita de imponderáveis e nós próprios nos encarregamos de desequilibrar as contas.
Sei que existem, mas custa imenso imaginar, vidas que percorrem apenas dias infelizes, em que o cinzento desses dias pinta de cinza as dores da alma. Lemos, ouvimos e vemos histórias do mundo escritas com dores e dramas que nos magoam, que julgamos sentir, mas que, na realidade, não experienciamos. Sei que o ser humano consegue sofrer por empatia e, mesmo, por antecipação, mas é uma espécie de sofrimento intelectualizado, uma espécie de racionalização das emoções. Sofrer as dores da fome, do medo, do abandono é mal muito maior do que imaginá-las
Resta-nos imaginar sempre melhores dias, e é essa incógnita do futuro que justifica uma existência. A incerteza do amanhã é a melhor força para conduzir os pés em carreirinho e o olhar em frente.
Aquele meu vizinho pensava também assim, mas um dia perdeu toda a esperança. Tinha-se metido num negócio de compra e venda de bacorinhos que fornecia aos diversos moradores da aldeia e sonhava com alguns lucros que lhe permitiriam uma vida mais desafogada. Geralmente ia buscar pequenas manadas à zona de Freixo de Numão, as quais, depois, trazia de madrugada. Os bacorinhos seguiam a marrã como mãe adotiva de uns e verdadeira de outros e ela, por sua vez seguia os calcanhares do seu filho mais velho, grunhindo contente. Pela hora do meio-dia paravam onde dava e descansavam até à madrugada seguinte, para voltarem ao caminho.
O negócio prosperava e de cada vez que ia até terras do Coa pagava já com dinheiro sonante, sem ficar a dever nada aos criadores. Chegado à aldeia, vendia os pares de bacorinhos a cada uma das casas ou quintas, os quais seriam cevados até terminarem no banco da matança, em janeiro ou fevereiro do ano seguinte.
Um ano houve em que tudo correu mal: muitos porcos tinham-se já mostrado mortiços no caminho e ao avistar a aldeia, no alto de Santiago, alguns caíram para o lado, simplesmente mortos. A peste tinha chegado e a sua honestidade não lhe deixou vender um sequer dos animais. No dia seguinte estavam todos mortos e até a marrã apresentava já os pruridos atrás das orelhas e o cachaço violáceo.
Tinha tudo pago, mas não tinha nada mais de seu que esse tudo. Chorou sozinho – os homens do Douro não brotam lágrimas em público –, falou com a mulher e disse que desistia. Voltaria a não ter sonhos e a não ver a beleza dos dias. Tinha lavado a cara com as lágrimas dos dias cinzentos e, ao deitar fora a água da bacia, os olhos alegres foram com ela. Deixara de ver o mundo que conhecia e o coração fechava as portas aos abraços e carinhos da esposa e dos filhos.
Voltou aos montes da Esculca e começou a falar com as pedras. Maldisse o mundo e a vida e sentia que nada mais valia a pena. Foi então que reparou que, no meio dos penedos, havia umas flores pequenas, singelas e belíssimas, que se agarravam à vida e enchiam o ambiente inóspito de cor. Percebeu que, afinal, desistir não é verbo; é adjetivo dos fracos e até as flores fazem o que podem para viver.
Assim pensava, quando pareceu ouvir vozes. As flores então disseram-lhe: nós não nos agarramos às rochas para sobrevier; nós agarramo-nos às pedras para te dar a nossa beleza.
Voltou à mulher e aos filhos e decidiu que seria a flor da casa, não para sobreviver, mas para a tornar bela e dar cor aos dias cinzentos.
Texto de Antonino Silva
Texto de Antonino Silva
Desistir não é verbo.
ResponderEliminarÉ adjectivo.
Esta a conclusão deste belo texto.
Li, melhor, reli e retive a frase que, apesar de não saber descrever com a clareza e a beleza do nosso mestre, me prendeu pela força e pelo sentido. " A incerteza do amanhã é a melhor força para conduzir os pés em carreirinho e o olhar em frente"! Sejamos, cada um, "a flor da casa". Grande abraço, meu amigo Antonino.
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