quinta-feira, 9 de abril de 2020

O BAIRRO NORTE ...





Saudade ...

A praia de Mira é um viveiro de memórias, de recordações doces que me fazem navegar pelo passado, como quem rema na Barrinha num barco carregado de moliço. O verão era sempre um amontoado de povo na sua essência, de portugueses e emigrantes que falavam um francês emprestado, com um rancho de filhos atrás que exigiam aos pais a bola ou o balão colorido que o feirante de ocasião apregoava a chamar a atenção dos turistas. Mas, no meio da confusão de gente que procurava sofregamente viver um ano em apenas quinze dias de lazer, havia o Bairro Norte na sua calma espacial. Era um aglomerado de moradias singelas, construídas com o produto da faina do bacalhau. A esmagadora maioria das vivendas pertencia a pescadores que moirejavam pelos mares frios do Canadá. Eram campanhas longas de muitos meses e elas, as mulheres, ficavam em terra a tratar da lavoura e dos filhos, e a responsabilidade de no verão alugar as casas aos forasteiros, sendo os preços acertados entre todas as mulheres, para que não houvesse grande discrepância de valores. E era no Bairro Norte que eu e a minha família lançávamos âncora em tempo de férias. Por várias vezes alugámos a mesma casa. Situava-se na primeira linha de praia. Por um portão de madeira saímos para a areia e, trepando um pequeno morro, repousávamos a vista sobre o oceano. Um mar largo e encapelado, que nos trazia o cheiro intenso da maresia. E nós ali, no cimo da duna, de cabelos ao vento e os filhos pela mão, num pacto de amizade com as ondas e a branca espuma. Lá longe, estático por entre a bruma de fim de tarde, um barco de proa erguida repousava no areal, na espera de uma nova refrega com o mar. E à noite, com a cabeça deitada no travesseiro, ouvir como pano de fundo a voz intemporal do oceano e adormecer em paz no silêncio das estrelas e do Bairro Norte. Por vezes, a nossa senhoria aparecia. Trazia-nos algo que colhia nas suas terras cultivo - um gesto de cortesia. Depois, no pequeno quintal junto à duna, falava da vida e das suas inquietações. Lembrava o marido que batalhava lá longe na epopeia do bacalhau. E, enxugando os olhos húmidos ao avental preto, falava de saudade. E nós a olhar, tentando animá-la com palavras sentidas, quase familiares. Era uma simbiose de afetos. Afinal, de sentimentos partilhados entre quem vivia do mar e de nós, que no Bairro  Norte do nosso contentamento e por duas semanas, aportávamos àquele cais de felicidade.
Quito Pereira    

9 comentários:

  1. Estava programado outro texto, mas houve um incidente informático. Fica este no horário que pediste, porque eu sou um funcionário bem comportado.
    Um abraço, Rafael

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  2. Tudo bem.O que interessa é a postagem. Qualquer que seja o texto é de interesse.
    Para a próxima já o erro estará remediado.

    Abraço

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  3. Abençoado erro informático! Este texto é belíssimo e tão bem escrito que mesmo que não conhecêssemos a Praia de Mira, ficaríamos a conhecer.
    Quito, vou-te dizer uma coisa que talvez não saibas! Na Praia de Mira os carolas ex-pescadores, fizeram um pequeno Museu, bastante interessante e onde tem em miniaturas e à escala, com bastante rigor, as casas do Bairro do Norte, com as traseiras viradas para a praia o quintal e até as cancelas a que te referes. Tem mais coisas interessantes. Uma única sala, modesta, mas que retrata bem o povo e a Praia de Mira. A entrada é grátis, mas temos que procurar o pescador que tem a chave. No final quem quer, deixa qualquer coisa, pois eles não têm qualquer apoio para pagar as despesas.

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    1. Obrigado Alfredo pelas simpáticas palavras. Desconheço de facto esse pequeno Museu de que falas e que deve ser bem interessante. Agora um pequeno pormenor: correctamente assinalas Bairro do Norte, mas os naturais Mira apenas diziam Bairro Norte, retirando o "do" e que foi o motivo do título que arranjei para ser fiel à forma como eles se referiam àquele aglomerado de casas e pequenas vivendas das minhas memórias ...
      Um abraço

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  4. As tuas recordações de Mira são comuns a quase toda a malta do nosso Bairro de Coimbra que nas férias grandes emigrava para a Barrinha e para outro bairro, esse que recordas com tão belas palavras e com tal rigor que parece estar a vê-lo.

    Nunca lá fiquei que o meu poiso era no parque de campismo municipal.

    Obrigado Quito por este reviver de tão bons tempos idos.

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  5. Acho que todos nós os que vivemos ou passámos pelo nosso Bairro coimbrão, temos um passado ligado a Mira. Também andei pelo parque campismo e muito mais tarde e junto ao parque, passei férias num casarão das Zitas que era uma espécie de pensão de quartos modestos e comida regrada e asseada. Até em trabalho passei por Mira - Praia como funcionário dos Serviços Florestais. Naquele tempo, os Serviços tinham um barco a remos a que adaptaram um motor fora de borda "Mercury". Um dia na Barrinha, o motor caiu à ria e para desespero meu e dos que iam comigo e lá ficou até hoje ...
    Obrigado pelas palavras amáveis que me diriges sobre o texto.
    Um abraço

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  6. Praia de Mira foi durante muitos anos o meu"poiso" de Verão, pois residia em Cantanhede, onde trabalhava nos CTT e a Celeste Maria dava Escola por ali perto. Normalmente acampavamos no Parque de Campismo com os meus sogros. Também ficamos na Pensão Maçarico.
    Conheci mal o Bairro do Norte.
    Mas com o excelente texto fiquei a fazer ideia como era e como lá viviam os pescadores e suas famílias. Os nossos amigos têm muito boas recordaçoes de lá...

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    1. Falas e bem dos Maçaricos, família incontornável da Praia de Mira. Um dia, com um Maçarico, o que era dono da pensão, ele ofereceu -me um cálice de aguardente que bebemos fazendo um brinde. Aquilo era pólvora mas sobrevivi e ele a olhar para mim admirado, porque ele parecia que tinha bebido um copo de água ...

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  7. O João Maçarico, da Pensão, era um grande amigo meu, inclusive foi ao meu casamento.
    Sei tantas historias passadas com ele que davam um livro.
    Uma excelente pessoa. Infelizmente já morreu.

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