Saudade ...
A praia de Mira é um viveiro de memórias, de recordações doces que me fazem navegar pelo passado, como quem rema na Barrinha num barco carregado de moliço. O verão era sempre um amontoado de povo na sua essência, de portugueses e emigrantes que falavam um francês emprestado, com um rancho de filhos atrás que exigiam aos pais a bola ou o balão colorido que o feirante de ocasião apregoava a chamar a atenção dos turistas. Mas, no meio da confusão de gente que procurava sofregamente viver um ano em apenas quinze dias de lazer, havia o Bairro Norte na sua calma espacial. Era um aglomerado de moradias singelas, construídas com o produto da faina do bacalhau. A esmagadora maioria das vivendas pertencia a pescadores que moirejavam pelos mares frios do Canadá. Eram campanhas longas de muitos meses e elas, as mulheres, ficavam em terra a tratar da lavoura e dos filhos, e a responsabilidade de no verão alugar as casas aos forasteiros, sendo os preços acertados entre todas as mulheres, para que não houvesse grande discrepância de valores. E era no Bairro Norte que eu e a minha família lançávamos âncora em tempo de férias. Por várias vezes alugámos a mesma casa. Situava-se na primeira linha de praia. Por um portão de madeira saímos para a areia e, trepando um pequeno morro, repousávamos a vista sobre o oceano. Um mar largo e encapelado, que nos trazia o cheiro intenso da maresia. E nós ali, no cimo da duna, de cabelos ao vento e os filhos pela mão, num pacto de amizade com as ondas e a branca espuma. Lá longe, estático por entre a bruma de fim de tarde, um barco de proa erguida repousava no areal, na espera de uma nova refrega com o mar. E à noite, com a cabeça deitada no travesseiro, ouvir como pano de fundo a voz intemporal do oceano e adormecer em paz no silêncio das estrelas e do Bairro Norte. Por vezes, a nossa senhoria aparecia. Trazia-nos algo que colhia nas suas terras cultivo - um gesto de cortesia. Depois, no pequeno quintal junto à duna, falava da vida e das suas inquietações. Lembrava o marido que batalhava lá longe na epopeia do bacalhau. E, enxugando os olhos húmidos ao avental preto, falava de saudade. E nós a olhar, tentando animá-la com palavras sentidas, quase familiares. Era uma simbiose de afetos. Afinal, de sentimentos partilhados entre quem vivia do mar e de nós, que no Bairro Norte do nosso contentamento e por duas semanas, aportávamos àquele cais de felicidade.
Quito Pereira
Estava programado outro texto, mas houve um incidente informático. Fica este no horário que pediste, porque eu sou um funcionário bem comportado.
ResponderEliminarUm abraço, Rafael
Tudo bem.O que interessa é a postagem. Qualquer que seja o texto é de interesse.
ResponderEliminarPara a próxima já o erro estará remediado.
Abraço
Abençoado erro informático! Este texto é belíssimo e tão bem escrito que mesmo que não conhecêssemos a Praia de Mira, ficaríamos a conhecer.
ResponderEliminarQuito, vou-te dizer uma coisa que talvez não saibas! Na Praia de Mira os carolas ex-pescadores, fizeram um pequeno Museu, bastante interessante e onde tem em miniaturas e à escala, com bastante rigor, as casas do Bairro do Norte, com as traseiras viradas para a praia o quintal e até as cancelas a que te referes. Tem mais coisas interessantes. Uma única sala, modesta, mas que retrata bem o povo e a Praia de Mira. A entrada é grátis, mas temos que procurar o pescador que tem a chave. No final quem quer, deixa qualquer coisa, pois eles não têm qualquer apoio para pagar as despesas.
Obrigado Alfredo pelas simpáticas palavras. Desconheço de facto esse pequeno Museu de que falas e que deve ser bem interessante. Agora um pequeno pormenor: correctamente assinalas Bairro do Norte, mas os naturais Mira apenas diziam Bairro Norte, retirando o "do" e que foi o motivo do título que arranjei para ser fiel à forma como eles se referiam àquele aglomerado de casas e pequenas vivendas das minhas memórias ...
EliminarUm abraço
As tuas recordações de Mira são comuns a quase toda a malta do nosso Bairro de Coimbra que nas férias grandes emigrava para a Barrinha e para outro bairro, esse que recordas com tão belas palavras e com tal rigor que parece estar a vê-lo.
ResponderEliminarNunca lá fiquei que o meu poiso era no parque de campismo municipal.
Obrigado Quito por este reviver de tão bons tempos idos.
Acho que todos nós os que vivemos ou passámos pelo nosso Bairro coimbrão, temos um passado ligado a Mira. Também andei pelo parque campismo e muito mais tarde e junto ao parque, passei férias num casarão das Zitas que era uma espécie de pensão de quartos modestos e comida regrada e asseada. Até em trabalho passei por Mira - Praia como funcionário dos Serviços Florestais. Naquele tempo, os Serviços tinham um barco a remos a que adaptaram um motor fora de borda "Mercury". Um dia na Barrinha, o motor caiu à ria e para desespero meu e dos que iam comigo e lá ficou até hoje ...
ResponderEliminarObrigado pelas palavras amáveis que me diriges sobre o texto.
Um abraço
Praia de Mira foi durante muitos anos o meu"poiso" de Verão, pois residia em Cantanhede, onde trabalhava nos CTT e a Celeste Maria dava Escola por ali perto. Normalmente acampavamos no Parque de Campismo com os meus sogros. Também ficamos na Pensão Maçarico.
ResponderEliminarConheci mal o Bairro do Norte.
Mas com o excelente texto fiquei a fazer ideia como era e como lá viviam os pescadores e suas famílias. Os nossos amigos têm muito boas recordaçoes de lá...
Falas e bem dos Maçaricos, família incontornável da Praia de Mira. Um dia, com um Maçarico, o que era dono da pensão, ele ofereceu -me um cálice de aguardente que bebemos fazendo um brinde. Aquilo era pólvora mas sobrevivi e ele a olhar para mim admirado, porque ele parecia que tinha bebido um copo de água ...
EliminarO João Maçarico, da Pensão, era um grande amigo meu, inclusive foi ao meu casamento.
ResponderEliminarSei tantas historias passadas com ele que davam um livro.
Uma excelente pessoa. Infelizmente já morreu.