quarta-feira, 22 de abril de 2020

O LODO E AS ESTRELAS - PARTE 2

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Barragem de Miranda do Douro ...

De novo vamos ao encontro de Telmo. De novo folhear um breviário de sofrimento. De novo recuar a uma época remota entre 1953 e 1964. Uma saga heróica povoada de heróis reais e anónimos. Naquele meio do nada, edificaram-se bairros – bairros provisórios e bairros definitivos de apoio à construção dos colossos de betão. Se os bairros provisórios eram exatamente bairros que se desconstruíam no fim da obra, já os bairros definitivos eram povoados por gente que ali ficaria mantendo o funcionamento das barragens. Ali, naquelas casas, viviam pessoal dirigente de várias categorias profissionais, mas também uma outra franja de funcionários que trabalhavam para a Hidroelétrica do Douro. Os bairros eram distintos e bem demarcada a divisão social. Mas depois havia os outros. Os que vinham de longe na procura de trabalho, muitos oriundos das minas de carvão e que não tinham por vezes e muitas vezes, nem casa nem abrigo. Dormiam ao relento ou debaixo de fragas, à mercê de um  qualquer empreiteiro que lhes dava trabalho temporário. Depois, quando a empreitada acabava, restava a penúria e a fome. Mas acompanhemos a pena de Telmo:

O Marteleiro

Estava estendido na cama, a tossir. Ao pé da cabeça, uma camisa velha enroscada. De minuto a minuto, levantava a cabeça e deitava lá sangue. Sangue da boca, sangue dos pulmões, Sangue que lhe passou pelo corpo todo. O seu corpo de marteleiro gasto e cansado e só com trinta anos.
- Já trabalhei na Caniçada.
- E agora?
Eu digo o resto: quero ir para a terra, com a mulher e os filhos – curar ou morrer – e não tem dinheiro para a viagem.
span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Quanto valem os seus pulmões?
Ninguém compra os pulmões do António?
Ele ajudou a fazer o conforto de muitos lares. Ele ajudou a fazer o lucro de alguma Companhias.
Levantem-se. Tirem o chapéu.
É o António que passa !
10 de Dezembro de 1955
O Braço Bambo

Hoje, apertei o braço do Araújo, para o amparar. Todo o dia pensei no seu braço  - bambo e duro. Mesmo agora me parece vê-lo, suspenso no ar. Por cima do estaleiro e do bairro, duro e bambo.
A quem aponta? A quem acusa? . Tenho medo.
Naquele dia, quando estoirarem os foguetes e houver bênção, discursos e banquete …o braço bambo e duro apontará.
A quem aponta? A quem acusa?
Tenho medo. Acusa todos.
5 de Novembro de 1956 

5 comentários:

  1. Aqui fica Fernando o segundo de 4 textos sobre as barragens.
    Um abraço

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  2. Para quem não leu a Parte 1, coloquei o linK da parte 1

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  3. Vi na TV há dias um episódio sobre a construção da barragem de Picote que, penso, esteve na origem deste belo texto do Quito.
    O que mais me impressionou foi a preocupação dos arquitectos e engenheiros responsáveis de enquadrarem as construções dos bairros no ambiente pedregoso da paisagem.

    E de dotarem esses bairros de todas as infraestruturas de comércio, lazer, religião e desportivas que servissem a população sem a obrigar a deslocarem-se kms para satisfação das suas necessidades básicas

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    1. Rui,estes textos são a conjugação do episódio televisivo que vi com o livro de Telmo Ferraz. Foi um homem notável que ajudou muitos de por lá andavam entregues ao acaso e antes de ter demandado África. Archer de Carvalho, aos 35 anos de idade, tomou para si o encargo de edificar aquela cidade de apoio às barragens e com as valências que referes, e com a resistência das populações. Nestes quatro textos penso que ficará uma pálida ideia daquele fenómeno social desconhecido de muita gente . Mas foi o livro do padre Telmo o guião de que me socorri para esta colaboração no blog do Rafael ...

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  4. Um texto com uma força enorme. O trabalho nas minas era mal pago e cada ano de trabalho tirava cinco de vida. O trabalho na construção das barragens fazia-se sem quaisquer condições de segurança (como, aliás, todos os trabalhos da indústria e da construção). Se num mês morriam dois, era só o trabalho de rapidamente os substituir por outros dois.
    Trabalho duro que, embora se possa pensar o contrário, nem os engenheiros eram poupados à dureza, insegurança e agressividade desses trabalhos.

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