O Hipólito ...
Era uma vez um bairro. Um bairro que era território Apache.
Uma espécie de reserva de índios sem índios. Proscritos da Alta da cidade
académica ocuparam casas que floresceram numa esquadria perfeita entre ruas e
praças. Cada praça, cada rua, um feudo. A proximidade dos vizinhos e a partilha
de um ramo de salsa ou de uma caixa de fósforos para acender o “Hipólito” com
que se confecionava a comida. Elas, de avental das lidas da culinária, falavam
entre quintais das coisas que muitas vezes achavam sérias da vida, como ditos e
mexericos. Eles tinham partido de manhã para a batalha da vida. Vinham almoçar
a casa e chegavam de casaco ao ombro e gravata ao pendurão, encalorados em dias
de estio. À noite, nas ternas noites,
elas ficavam em casa a fazer renda ou a ver televisão, se a tivessem. Eles iam
até ao Centro de Recreio. Lá, bebiam cerveja e comiam tremoços e amendoins.
Também jogavam às cartas num alvoroço do ganhar e perder. Maldito trunfo que
saiu a destempo. Maldita manilha que comeu o valete. Malditos caroços por onde
se contabilizava as azeitonas que o freguês tinha engolido. Bendito marçano que
vinha à casa das freguesas. Era o rol das compras que se pagavam ao fim do mês.
Olhem, venham comigo e naveguemos pelo passado. Aqui é a mercearia do Alípio.
Vende de tudo e até farinha “Amparo”, que é o amparo dos velhotes. A caixa
verde com um idoso de respeitável barba branca e longa plasmado no pacote,
convida a provar. Registem, aqui é talho do Aires, com a carne vermelha e
apetecível exposta em ganchos que se vêm da rua. Aqui ao lado, olhem lá para
dentro. É a Tabacaria Celeste da Dona Rosa. Observem quantos jornais, quantas
revistas, quantos brinquedos. Aqui, é um
Café. Aquele homem que está ali debruçado sobre um tabuleiro a jogar as “damas”
é o Silva. Também joga “xadrez” e faz “cheque-mate” ao cliente que, enfadado,
espera por meia dúzia de pastéis de nata. E, nesta esquina, é o Café “Abrigo”.
Aquele homem de tez roxa como a túnica de Cristo é o Domingos. Ganha a vida a
engraxar os outros. A graxa abundante não lhe chegou para subir na vida. Mas,
para os índios, a solidariedade nunca foi palavra vã e o Domingos lá vai
escovando o seu triste fado. Agora, espreitem ali - é a barbearia. Faz “caldinhos”
e penteados de “risco ao lado”. E se o freguês não se precaver, afundam-lhe a
cabeça num frasco de brilhantina. Já agora, fiquem a saber que também temos uma
esquadra da polícia, naquela rua estreita. Era escusado. Correr atrás de uma
bola numa praça não é costume apache. Mas é para nós, crianças felizes, para
quem partir um vaso das flores com um chuto monumental para o jardim da vizinha,
é um hino acabado ao romantismo.
Quito Pereira
Um bom texto onde a saudade impera.
ResponderEliminarForam realmente tempos em que o Bairro(ainda Marechal Carmona), se tornou num mundo à parte do resto da cidade!
Teve o privilégio de juntar familias vindas da velha Alta, onde era notório a grande quantidade de jovens, rapazes e raparigas.
Atendendo à época os rapazes gozavam de maior liberdade, e é aqui que aparecem os Apaches fazendo jus a hábitos próprios dos indios...
Eram de uma geração muito mais nova daquele a que eu próprio pertencia!
Mas lembras bem no texto o que era o viver em comunidade das familias que habitavam as vivendas sem vedações, em que havia a partilha de muitas coisas entre familias...
Recordas bem a mercearia do Alipio(que me faz recordar o seu filho Helder, crack de ténis de mesa, ou seja o ping pong, o Domingos engraixador, o Sr Silva do café Caravela e os jogos de damas, o café Abrigo do sr Graciano onde se marcavam as mesas com as cadeiras voltadas sobre elas, para ver a televisão, o cavalo seilvagem de intermináveis jogos de futebol, enquanto o Manel padeiro apascentava as ovelhas, o posto da policia com primos Simões, policias que ajudávamos a fazer as rondas...
Enfim, tanto que se poderia relembrar, já que em vários textos, como do Rui Felício foram já motivo de vários apontamentos!
Fiquemos com a lembrança do fósforo para acender o hipólito...
Que excelente visita ao nosso bairro, cheio de história ,onde tive uma infancia tao feliz. Obrigado Quito
ResponderEliminarEu não era morador do Bairro (e só Bairro), como em todo o Calhabé se chamava. Os outros não tinham o privilégio de serem "O Bairro", eram o Bairro da Arregaça, o Bairro dos Olivais, mas O Bairro, em Coimbra, só havia o Marechal Carmona, hoje Norton de Matos.
ResponderEliminarNão sendo morador do Bairro, lembro-me que, com 6 ou 7 anos, eu e mais uma data de miudagem da Rua do Brasil, e até da Arregaça, íamos brincar para os baloiços do Bairro.
Mais tarde, com 15, 16 anos, no Verão, logo que as aulas acabavam, íamos passear para o "picadeiro" depois de jantar. Havia outros "picadeiros" na cidade, mas nenhum com o encanto e magia do do Bairro.
Passei horas naquele Bairro! Tantas que foi lá, já depois de vir da tropa, que conheci a Daisy, namorámos e casámos. Muitas das amizades da juventude ainda hoje as mantenho.
Muitas histórias tenho passadas no Bairro! O Bairro faz parte da minha história.
E era na praça da ilha da Madeira que morava a tua amada...
ResponderEliminarA última amada, queres tu dizer!...
EliminarExactamente... E que te deu entrada no EG em 2008!!!!
EliminarMalvado! Se não me tens deixado entrar, hoje carregavas o remorso do meu suicídio...
EliminarResumisse em poucas linhas o que era o Bairro. A linha do comboio era a fronteira que os apaches estabeleceram para impedir a entrada no bairro a não moradores.
ResponderEliminarComo diz o Alfredo, para quedista com livre trânsito, o Bairro era simplesmente o Bairro e Coimbra a ele se referia sem precisar de citar o nome e o apelido.
Salvo a figura típica que era o Domingos à quem te referiste outras ficaram por nonear.
Mas se quem te recordas também.
O Leite Braga empregado do desemprego cliente seguro da D.Em a.
O Prof. Ilharco adversário predilecto do Silva no jogo das damas.
As Filipinas mãe e filha lindas mulheres que endoideciam a rapaziada.
O Estaralha que ganhou uma aposta no Café Abrigo emborcando 17 bagaço de enfiada.
A Marquesa que foi morar para a Daniel de Matos e que se apaixonou pelo Elói.
O Teixeira Zarolho que já tinha um saco de serapilheira cheio de peças que lhe iam sobrando de cada vez que desmontava o motor do seu velho carro.
O Carapau de Corrida, polícia da esquadra do Bairro que perseguia os miúdos por andarem de bicicleta sem licença.
E outros e outros...
E quem não se lembra do sr Donário que tomava conta da sede e do bar na antiga sede do Centro de Recreio Populardo Bairro Marechal Carmona. Guardava o dinheiro numa caixa com vários compartimentos, conforme as bebidas consumidas(a com mais saída era Anis Tríplice).pague-se!.Nao tenho troco! Embora houve-se num outro compartimento de outra bebida...!!!
ResponderEliminarE QUE LINDO HINO TU FAZES AQUI AO NOSSO BAIRRO
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