quarta-feira, 28 de abril de 2021

COSTUMES E TRADIÇÕES DA BEIRA ALTA Texto de Georgina Ferro

O ti Francisco trabalhara uma vida inteira naquele labutar árduo do campo, onde raramente entrava o arado pela pequenez das suas terras. Eram os seus braços que levantavam e baixavam o sacho e a enxada que abria a terra; os mesmos braços que seguravam o machado e a pedoa para arranjar lenha;  ou o malho e mangual para debulhar o grão, feijão, centeio, cevada...os mesmos que, com devoção seguravam um varal do pálio em dias de procissão ... 

     No fim do Verão adoecera com as maleitas e não houve mezinha que o revigorasse. Dia a dia definhava, dizia a sua Benedita, limpando algumas lágrimas na aba do avental.

      Se a família já era tão pobre como iriam sobreviver a sua mulher  e as duas filhas sem o seu amparo, diziam as pessoas muito condoídas, que tentavam repartir o quase nada que tinham para lhes matar alguma fome. O pior foi quando o frio arribou descontrolado, ora em louca ventania, ora em forte enxurrada ... 

     Certa tarde, os sinos desataram a dobrar, numa toada longa e triste. Foi um anoitecer que quebrou a rotina das noites frias da minha infância!

      Eram cinco da tarde e a escuridão da noite já se preparava para adormecer deitada na alvura dos lençóis da neve que cobriam a terra.

 Minha tia corria de eira para beira, a espreitar a cama da Mimosa, a achegar-lhe mais uma faixa de feno, a tapar a capoeira das galinhas já resguardadas, a fechar bem a cortelha do marrano, a apanhar umas torgas para atear o lume e dispunha-se a subir as escaleiras quando reparou na altura da neve que as cobria. Voltou à loja e subiu as escadas de madeira que abriam para a sala pequena por um alçapão. Foi até à cozinha e voltou atrás, de vassoura na mão para varrer alguns galhitos que escorregaram do molho. Aproveitou para apanhar a cinza ainda afogueada para a pilheira, juntou os tições meio ardidos e colocou lá por trás um novo cepo que iria aguentar o serão. Pegou na chaminé do candeeiro a petróleo, passou-lhe um esfregão bem ensaboado, depois por água limpa e pediu-me para, com muito cuidadinho, limpar por dentro com o jornal “Amigo da Verdade” da semana anterior, pois a minha mãozita era pequenina, enquanto ela enchia de petróleo o depósito e puxava a jeito a torcida pelo bocal. Depois, com um galhito do lume acendeu a torcida, colocou a chaminé e pousou-o no pedestal!

  _ Boa noite nos dê Deus! – disse.

 _ Deus nos salve – respondi eu, como me tinham ensinado.

 Depois, foi um ver se te avias. Embrulhou-se no negro xale de lã e de botas de borracha correu ao chafariz a encher o cântaro da água, que acabara de despejar para as panelas de ferro encostadas ao lume. Recomendou-me que não cirandasse perto da lareira enquanto ela não chegasse.  Podia sentar-me a descascar batatas para o caldo escoado.

 Assim fiz. Não tardou a soar o toque das Trindades e a minha tia já arribara.

 _ O Anjo anunciou a Maria...- rezou meu tio que chegava da carpintaria nesse mesmo instante,  e nós fomos respondendo, de pé, com as mãos postas, como era nossa devoção e respeito.

 Iria começar o serão com a monotonia dos dias gelados de Inverno, não tivesse aparecido a Ti Benedita, em soluços, dizer que já se tinha ”matado” (morrido, deveria ter dito) o nosso Chico, coitadinho, que já estava muito doente havia tempo e não aguentara o frio.

 Meu tio acendeu o candeeiro de mão e desceu novamente. Foi cortando umas tábuas de pinho que sempre tinha de lado. Não tardou a ouvir-se o martelar de pregos. Só voltou a subir quando minha tia lhe pediu que viesse que a ceia estava na mesa.

 O caldo escoado quase foi engolido, em pesado silêncio, como se tivéssemos medo que a morte andasse por perto. Minha tia pôs pimentos curtidos na mesa, para acompanhar a sopa, pois a carne cozida ao almoço, agora, parecia não cair muito bem...

 Arredámos a mesa, a tia lavou a loiça, pôs mais umas achas no lume, encostou-lhes uns rebolinhos (pedras redondas apanhadas na ribeira) para levarmos mais tarde a aquecer-nos os pés na cama. Passámos pelo alçapão, só utilizado nos dias muito frios, e fomos para a carpintaria. Meus tios forraram as tábuas com um pano negro por fora. Dentro puseram uma colcha branca de algodão que a Ti Benedita trouxera de sua casa. Depois estendeu-se um tecido de tule branquinho, que iam entufando e eu prendia com preguetas de cabeça com forma de estrelas doiradas. À cabeceira pregámos uns anjinhos, também doirados. Parecia uma caixinha bonita para fazer de berço, pensava eu de mim para mim, sem me atrever a levantar a voz, por respeito à dor que sentia haver à minha volta.

  Georgina Ferro

 

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