O milionário de sonhos
No crepúsculo da consciência quando o sono se aproxima a
passos largos, João Vulgar, meditava pela triste vida que tinha: pensou no
quanto lhe custava ter um carro velho, avariara na manhã anterior, ressentiu de
novo o incómodo de se deslocar em transportes públicos, onde as pessoas lhe
parecem tristes, fechadas, arrastam o corpo como ícones de conformismo,
sobrevivem e não vivem, fisionomias vencidas, maquilhadas de uma dor invisível
partilhada numa solidão massiva.
.“Mais três dias!”, alentou-se,” E voltarei ao carro, é velho, mas é quente e tenho o rádio por companheiro”. Fustigou o parco sossego da alma, assestando-se no tecto frio e branco cuja pintura estava há anos prometida, mas sempre adiada, apesar das repetidas reprimendas da mulher. Tentou conformar-se, desprender-se do sonho decano, a “sua” onírica vivenda de jardim francês salpicado de framboesas e fontes com anjos despidos a velarem por brancas rosas frágeis.
A sua Fé vacilava e empurrava-o para uma depressão, diria
que sentia uma crise existencial. Zangou-se com Deus e justificou-se: cinquenta
anos de idade, a gota, a mulher obesa, antípoda das mulheres que todas as
noites lhe entram pela sala de jantar no “quadro” do ecrã televisivo, o
enfadonho e arcaico emprego de guarda-livros, os amigos perdidos como afluentes
se perdem dos rios, o vetusto bairro caiado de cusquice concupiscente, o clube,
o partido, a igreja, a reforma, a pedinte Romena de criança nos braços, as
notícias do mundo, todo o universo lhe parecia cinzento, amargo... Apenas lhe
restou a abandonada colecção de borboletas, poeirenta e esquecida na estante
quebradiça, e as pescarias na barragem da aldeia… “Se Deus fizesse do Mundo uma
só barragem com margens polvilhadas de monarcas amazónicas com todas as cores
da íris, onde apenas houvesse um banco de pedra e tempo para pescar e pensar,
isso sim, seria o paraíso!” Nisto, o vulto do casaco pendurado, lembrou-o da
cautela de lotaria Europeia cuja ponta parecia querer saltar pela algibeira,
tinha uma borboleta indefinida no rosto, pareceu reconciliar-se com Deus,
negociar um pouco de sorte.
Do seu costumeiro hábito matinal de ler o jornal deu
prioridade à conferência do número premiado pela sorte. Num momento a alma
fundiu-se com o corpo, o sangue transfigurou-se em calor, uma corrente eruptiva
de emoções avassaladoras fluíam-lhe nas veias, teve de se sentar. Limpou o suor
da testa e trémulo reconfirmou: “Sou um milionário!” As suas preces foram
atendidas. A sua alegria era apenas distorcida por vagos camelos sedentos que
faiscavam enquanto enormes agulhas lhe picavam a alma.
.A única virtude que lhes reconheceu foi terem-lhe mudado o nome, passou a chamar-se João Precioso, e mais tarde, por insistências várias e oportunidade fortuita adquiriu o título nobiliárquico de Conde Precioso.
O tempo perpassa o Ser como o vento nos caniçais, e o Conde
João Precioso angustiava-se com a nova vida que tinha, chegou a privar-se de
comer e beber, para apenas poder sentir alguma coisa, nada lhe fazia sentido, o
suspiro passou a acompanhá-lo como um tique nervoso e apenas os bons vinhos lhe
elevavam a um bom humor artificial. Tentou de todos os artifícios da
imaginação: viajar, comprar, festejar, mas tudo parecia seco de autenticidade,
vazio de sentimento.
Começou a fazer uma vida dupla, a de pobre, em que se
trajava de vestes mundanas frequentando uma taberna castiça onde se regozijava
a jogar damas e sueca com reformados, falava de futebol e inventava problemas,
escondendo sempre a verdadeira identidade; e a vida de rico, aquela que sempre
sonhara, mas que afinal agora desdenhava.
O Ser tem momentos introspectivos onde lhe apetece mudar o
rumo do mundo interior, afinal aquele que em verdade podemos mudar. João
Precioso estava ébrio, triste e arrependido, pensou na mulher, e que linda
agora se lhe afigurava, relembrou a velha pequena casa e até o sofá bafiento do
odor dos felinos não o incomodou, teve saudades do trabalho, em verdade não foi
bem do trabalho, foi de estar ocupado, de ter o espírito responsabilizado e
absorto numa tarefa simples, mas cuja simplicidade de essencial se torna plena
de sentido.
.Telefonou para a mulher, não sabia o que dizer, tentou explicar-se, atrapalhou-se, já não sabia ser humilde e perdera a sensibilidade para pedir desculpa, ela chorou e apenas lhe disse: “Quando voltares a ser o João Vulgar, vem, que me aqueces a cama, e as flores sem ti murcham”, ele reagiu mal, arrependeu-se , desligou o telefone, não estava disposto a desligar-se do dinheiro.
.Entrou em raiva e em ódio, quando o Ser é fluído de tais sentimentos, a razão e o discernimento dissipam-se, e por norma apenas a violência, a insanidade e a catástrofe fazem sentido. João Precioso, tentou em vão escrever algo, não conseguiu, bebeu mais e apenas piorou a revolta, em desespero encontrou a solução: a morte. Saiu em flecha dirigiu-se ao primeiro edifício alto e saltou para a liberdade.
A meio da queda a mulher acordou-o e disse: “João querido,
tás a ter um pesadelo, estás todo suado!”, que alegria João Vulgar sentiu, tudo
não passara dum pesadelo.
Saiu então mais cedo, com ânimo e alegria olhava para o
mundo com os mesmos olhos, mas com outra consciência. Foi à missa das sete
horas, não era usual entrar em igrejas, apenas nos baptizados, funerais ou
casamentos, fez questão de deixar o bilhete de lotaria na caixa de esmolas, que
aliás nunca conferiu, e depois foi generoso no ofertório e convicto na
eucaristia.
Ficou mais pobre de Ter, mas nesse dia teve a convicção que
lhe sobrou muito menos Ser por preencher, e acima de tudo encontrou um novo
caminho cuja visão da vida lhe permitirá ser um milionário de Ser.
Contos e Sonhos
2003
Sem comentários:
Enviar um comentário