quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O QUE OS OLHOS NÃO VEEM, A BOCA NÃO SENTE Texto do Professor Antonino Silva

 O que os olhos não veem, a boca não sente.

Nos quesitos do comer e do beber é muito certo que nem todo o pão agrada às mesmas bocas. Cada um tem os seus gostos e as suas esquisitices do paladar. Quantas vezes os meus amigos não tiveram a curiosidade de adivinhar a que é que algum alimento saberia sem o terem provado? Por antecipação ou pura imaginação, os alimentos sabem a alguma coisa antes de nós os sabermos. Saber e sabor caminham de mão dadas e só sabemos a que uma coisa realmente sabe depois de a provarmos. Então saber-lhe-emos o sabor. 

Porém, como vinha dizendo mais acima, muitas vezes achamos que alguns alimentos serão mais ou menos saborosos olhando-lhes o aspeto, a cor e o cheiro, mas, mesmo aí, nada é produto acabado. Aquilo que para uns é uma nojice, será, para outros, um manjar divino e, quanto ao aspeto, estamos já conversados porque, se os olhos não virem, a boca não sente. Pensemos nas comidas processadas: quão feliz é o comensal que não lê os rótulos! Quem os lê passa mal e torna-se, num repente, em debiqueiro e lambisqueiro, porque tudo o que lá vem não se aconselha. A ignorância dá-nos calorias de sabor; o conhecimento dá-nos a sensação da culpa.

Nos inícios da década de ´80, aquela família numerosa começou a fazer uma coisa que era, à luz do tempo e do lugar, uma modernice: fazer uma semana de praia no Areinho, na Torreira. O agricultor arranjava maneira de alguém lhe regar o milho e outras culturas de fim de verão e metia a cachopada na sua Ford Transit, chegava e montava uma tenda feita de lona e passavam por ali uns dias de praia e descanso. Como coincidia com as festas dos Remédios, a saudade diminuía porque as festas de S. Paio também eram de vistão e havia lá de tudo, desde os comes e bebes até às diversões. Em suma: eram os melhores dias do ano para a família.

O pai começou a ver os veraneantes a comerem uma coisa que, na sua ideia, não seria de comer: caracóis. Contudo, não se quis ficar atrás e provou; provou e gostou. Parecia-lhe um pouco caro o preço que tinha de pagar e foi averiguando como se fazia o petisco. Deram-lhe as técnicas e só faltava a matéria prima. Por conspiração astral, nos últimos dias de férias, o tempo tornou-se bastante húmido e choveu mesmo, fazendo com que milhares de gastrópodes saíssem dos buracos das paredes e se espalhassem pelas ervas à volta do acampamento. Foi uma fartura de quilos e quilos que todos apanharam.

No regresso à terra, os animais foram preparados e comidos de todas as maneiras, porque todos gostavam. Todos menos uma senhora mais velha, caseira da quinta, que dizia que nem morta os comeria.

A mãe, matreira, apostou que também a senhora Rita os havia de comer. Foi dito e feito! Na manhã seguinte, à hora do almoço (refeição comida pelas 10 horas, servida com sopa e pão com apeguilho), misturou uma boa dose de caracóis na sopa de cebola e moira, triturando-os parcialmente. Era comum desfazer uma das moiras na sopa, para dar cor, gordura, aroma e sabor, por isso, os pedaços dos caracóis poderiam confundir-se com isso mesmo: os pedaços da moira. 

A refeição cumpriu-se e o dia correu normal. À hora da merenda havia caracóis na mesa e a senhora Rita levantou-se voltou à ladainha do costume: nem morta os comeria e nem lhes podia sentir o cheiro. A mãe resolveu então desatar o fio da meada e falou-lhe da maroteira da manhã. Não quis acreditar, não seria nunca possível! Porém, quando percebeu que a conversa era séria, correu para o fim da eira e procurou lançar fora tudo o que tinha comido, mas àquela hora já não havia sinais dos bicharocos. Restou-lhe lançar uma injúria e amaldiçoar a patroa que, do outro lado da eira apertava as mãos na barriga de tanto rir.

Não sei se a maldição funcionou, mas creio que não, porque, até hoje, a minha mãe foi e continua a ser uma mulher feliz, que se sente abençoada.

Professor Antonino Silva


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