Em dias menos bons, em que a esperança parece estar arredia, partilho convosco uma história crescida e nascida nesta quadra que passou.
Como pode o amor ser febre?
Estamos em dias de reconfiguração das emoções e de formas de sentir ou de ver o mundo. Crentes e não crentes, todos sentimos que são dias especiais, em que o nosso lado lunar decide brilhar ou, então, apagar-se de todo. Se decidir brilhar, tanto melhor; se decidir apagar-se também é bom, pois não terá sobre nós nenhum efeito nefasto da melancolia dos dias menos bons. O pessimismo de outros dias parece que se esbate e isso poderá dever-se a uma crença ingénua de que, na quadra natalícia, todo o homem se torna mais humano. No lado oposto da moeda surge o medo de não aproveitarmos estes dias, seja por omissão seja por cobardia. Recordo-me, quando era criança, de olhar depois, em janeiro, com imensa nostalgia para as férias do Natal e lamentar tudo o que não tinha feito.
Mas o António Vintém não era desses, de se arrepender ou de omitir. Fora sempre um rapaz decidido e, mesmo, teimoso. Dera muitas dores de cabeça à sua mãe com as coisas que teimava em fazer, mesmo sabendo que, com isso, lhe granjeava mais um ou dois cabelos brancos. Para ele, o amor filial não era cedência, e a mãe zangava-se a sério com tais teimosias.
Quando foi às sortes, o Vintém foi dado como apto e foi incorporado em infantaria, arma que dava a maior parte dos corpos para as picadas de África, alguns que por lá iam ficando.
Um pouco antes da incorporação, tinha apalavrado um namoro com uma jovem da Ribeira, cachopa asseada e com umas vessadas de herança. Nenhum deles era rico, mas o arranjo agradava a ambas as famílias e, já durante a recruta do António, os pais de uma e outra parte falavam na hipótese de um casório com bodas a festejar, quando ele voltasse dos 24 meses da comissão em África. Ainda não bem decidido, o Vintém parecia ser o único menos certo no contrato. Gostava dela, sim senhor, mas queria ver melhor onde parariam as modas.
Quando veio a guia de marcha, soube que pararia em Moçambique, na zona de Tete. Com o resto dos camaradas de lágrimas, seguiu no Niassa até Lourenço Marques e, depois, para o teatro de operações. Nas cartas que escrevia para casa e para a sua prometida, contava as suas noites de pesadelos. Aí viu de tudo e viu os horrores de quem morre e de quem mata. Não sabia porque estava ali, porque via pedaços de gente e sombras nos olhares. Havia dias de desespero e dias de descrença. Entre uns e outros, aproveitava todos os momentos em que podia sair do quartel e ir até ao povoado mais próximo, onde gostava de conviver com os locais, e começou a apreciar os olhares de cor de mel de Amélia, filha do chefe da aldeia.
Essa atração deu lugar a um sério amor e as cartas para casa e para a sua prometida da Ribeira tornaram-se mais frias. Até que, por fim, numa delas, pediu desculpa e pôs fim à relação, dizendo-se apaixonado por outra mulher, com outra cor de pele. O escândalo foi grande e toda a gente dizia que aquilo era temporário e não passava de uma doença, de uma “febre de negra”, expressão muito usada na região. Os pais escreveram-lhe exatamente a diagnosticarem essa doença e falaram-lhe das suas suposições.
Mas, como pode amor ser febre? Como pode amor ser doença? O que o Vintém tinha encontrado em Amélia era a paz e a dignidade e, nos seus braços, o afeto. Poucos meses depois soube que ela estava grávida e a sua comissão estava mesmo a acabar. Não veria nascer o filho de ambos e a história parecia entrar num trilho já gasto de tantas outras que aconteceram nestas malhas de um império que se desfazia. Regressou sem eles, para enfrentar os sermões dos seus.
Mas o António Vintém era teimoso e não apagava o passado. Por isso, dois anos depois, no dia 24 de dezembro, descia a pé a Olaia, cheia de geada e codo, para ir à Meia-Légua, à paragem da carreira, esperar a Amélia. Tinha mexido céus e terra e usado a influência de todos quantos conhecia para a trazer para ao pé de si. Tinha, até, casado já por procuração e não esperava apenas uma mulher; esperava uma esposa e uma filha.
Quando a viu descer da carreira, com uma menina belíssima ao colo, de olhos guixos e amendoados, sentiu que tudo valeria a pena e que, nessa noite de Natal, teria mais um presépio perfeito em sua casa.
Como podia tal amor ser febre?
ANTONINO SILVA
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