terça-feira, 14 de dezembro de 2010

BRANCAS MEMÓRIAS ...

Brancas memórias ...
É no mês de Dezembro que desaguam todas as emoções. É tempo de fazer balanço de um ano de alegrias, tristezas e canseiras. De recordar os amigos e familiares que partiram. O reabrir de chagas antigas e recentes. E de recordar os outros. Os que connosco convivem numa amizade fraterna. E é nisto que vou reflectindo, enquanto guio o meu carro ao encontro das neves trasmontanas. Dia três de Dezembro, acordou ensolarado. Decidi enfrentar a estrada, subindo no mapa do país até Terras de Basto. A televisão desaconselhava o percurso, que podia revelar-se duro e perigoso. Porém, partimos. Uma passagem pelas estradas geladas da Guarda, com os telhados das casas a luzir. Uma cuidadosa condução até Viseu não fosse o diabo tecê-las. Depois, com alguma preocupação, apontamos proa a caminho do Norte profundo. Há medida que vamos galgando a estrada, as montanhas e os campos vão-se vestindo de uma neve cada vez mais espessa. Não se vê vivalma. São quilómetros e quilómetros sem fim, sem nos cruzarmos com um carro. A meio da tarde, a chegada ao sopé do Monte Farinha. E é ali, numa casa solarenga do século XVII, que um grupo de ex-combatentes me espera. Somos oito e as nossas respectivas “ajudantes – de – campo”. E é nesses dias gloriosos, que vamos fazendo as nossas incursões por Trás-os-Montes. E à noite, ao calor da enorme lareira, falamos de tudo. Menos da guerra crua. Porém, este ano, bebendo um Douro de 97, a conversa descambou. Um dos nossos, por sinal o anfitrião, foi testemunha privilegiada dos trágicos acontecimentos de Maio de 1973, em Guidage, e das nossas pesadas baixas. Cheirou a morte e um dia, disse a uma alta esfera militar, que já não tinha condições psicológicas para continuar naquele inferno. Estranhamente, um mês depois, foi atendido. Como oficial miliciano, foi mandado para a Ilha das Galinhas, chefiar o presídio militar. Um oásis, em tempo de guerra. No seu temperamento cordato, cedo adquiriu o respeito dos reclusos. O presídio tinha uma camarata de presos de delito comum, e outra de presos políticos. Um dia, um africano abeirou-se dele e disse-lhe: ” … sabe, sou angolano e vim para aqui deportado. Vivia em Luanda, e fiquei com o meu curso a meio por ser simpatizante dos partidos que lutam pela independência…e agora só tenho um pensamento na cabeça …fugir desta ilha …e venho aqui dizer-lho cara a cara, porque o Senhor é boa pessoa …”. O meu camarada de armas, depois de se refazer da surpresa de tal franqueza, respondeu-lhe: “ … sabe, eu sou português, cursava o terceiro ano de Direito em Coimbra, e tenho o curso a meio, porque vim aqui parar. Pela minha responsabilidade, se o Senhor fugir, terei que mandar procurá-lo. Se conseguir escapar, fico muito satisfeito, mas se for apanhado, no âmbito das minhas competências, não permitirei que alguém exerça represálias sobre si …”. Por segundos, ficaram frente a frente, fitando - se, olhos nos olhos. Depois, estenderam a mão um ao outro, cumprimentando-se demoradamente. E ficaram amigos. O meu camarada de armas, regressou um dia a Coimbra e acabou o seu curso. Tem hoje o seu escritório, numa simpática cidade do norte do país. E foi este o pitoresco episódio que nos contou, a cerca de quatro décadas de distância do cenário de guerra, enquanto pequenos flocos de neve batiam levemente nas vidraças das janelas. Brancas memórias …
Q.P.

12 comentários:

  1. O calor desse episódio quase derrete a bela fotografia de neve que publicaste.
    E, contudo, não constitui surpresa para mim. Outros análogos conheci, alguns deles comigo mesmo.
    Não com prisioneiros mas com os soldados.
    Lembro-me de os ter esclarecido numas eleições para a dita Assembleia Nacional e que até ao mato vinha arrebanhar votos na União Nacional.
    A sua fraca politização dificultava-lhes o entendimento e pediam-me ajuda.

    Sem querer indicar-lhes caminhos, porque sempre prezei a liberdade de cada um,limitava-me a dizer-lhes que "votar" significa "escolher".
    E que o que lhes estava a ser apresentado era uma lista única, sem hipóteses de escolha, portanto.
    Não podendo escolher, o voto deixava de ser uma escolha e passava a ser um cheque em branco.
    Eles que decidissem o que fazer...

    No meu pelotão só dois votaram.
    Um mês depois tivémos a visita do Adminstrador de Bafatá que vinha incumbido de indagar porque motivo houve uma tal abstenção.

    Já não sei que desculpa lhe inventei, mas as coisas ficaram por ali...

    ----

    Desculpa, amigo Quito, mas as lembranças acorrem-me e não resisti a contar isto...

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  2. Guidage era de facto o cu do mundo, mas olha que a Ilha das Galinhas, mesmo não havendo guerra, também era um sítio do pior que há...
    Já lá estive depois da guerra. É uma ilhota que se percorre em meia duzia de passadas curtas.
    Esse teu amigo não estava formalmente preso mas era como se estivesse.
    Porque não dispor de liberdade de movimentos é quase como estar preso...

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  3. Quase sinto vergonha de ter passado 27 meses em Timor... Eu sabia o que era o inferno da Guiné e de alguns lugares de Angola e Moçambique!
    Mas nada fiz para ir parar a Timor, foi pura sorte e que sorte!!!...
    Gostei muito do texto do Quito e do Comentário do Rui!

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  4. Aquilo que aqui é referido, e bem contado pelo Quito e pelo Felício, são ´recordações de momentos vividos intensamente, e que indiciam o quanto vos tocou e como esses momentos ainda estão bem presentes.
    Abílio

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  5. Quito

    Mais um artigo escrito pela tua pena que não se lê simplesmente mas se absorve. Sem dúvida, uma pessoa rectilínia que atuou de acordo com os seus princípios. Só é pena o que vai acontecendo na Guiné nos nossos dias. Pelo que conheci do outro lado, talvez os que se encontrem afastados dos grandes centros, tenham uma vida mais calma mas a população em si nada ganhou pelas notícias que vou ouvindo e lendo.
    Também por onde andei encontrei alguns no mesmo género tanto nos militares como nos civis. Assisti à firmeza de um jornalista para com a censura composta de pides, que jamais esquecerei.
    Logo que terminada a guerra, seguiram-se momentos de alegria aonde homens que ontem tinham sido inimigos, riam-se uns com os outros a falar de como tinham tentado aniquilar o que estava à sua frente.
    Se um ou outro mostrava incompreensão por o outro ainda estar vivo, também mostrava a satisfação de estarem a beber uma cerveja juntos. Foram momentos muito lindos, inesquecíveis, só que pouco tempo depois começaram a agarrar nos civis e por motivos sem base nenhuma, a metê-los em estádios como Pinochet fêz. Fui ver um desses estádios na cidade de Maputo. Depois levávam-os para campos de reeducação, que mais não eram que de concentração. Para ironia da situação, nesses estádios havia pouquíssimos brancos pois também já lá haviam poucos e os que aí estavam, tinham passaporte para partirem se assim o quizessem e portanto não foram eles que sofreram mais.
    Com todos os defeitos porque ninguém é perfeito, ainda bem que apareceu um Joaquim Chissano que não sei como, não fez parte dos fundadores da Frelimo fuzilados sumáriamente em 25 de Junho de 1977, como o pai do atual dessidente e presidente da cãmara da cidade da Beira. Pois, tive a possibilidade de viver o antes, durante e depois, o que tráz recordações que vão connosco. No caso da Guiné ainda não apareceu nenhum outro "Chissano". Dá para pensar.

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  6. leio com interesse e emoção...
    a amizade prevaleceu com os companheiros de guerra... ora se riem ora se emocionam...mas o convivio é saudável e as rotas vão sendo cumpridas...ora com neve ora com sol ora com chuva...isso é o que importa!

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  7. Hoje estive (com o nosso Rafaelito) no lançamento do livro «a última missão». E o autor falou de excertos do livro, que tem como fulcro Guidage.

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Convencao de Genebra...prisioneiros de guerra...respeito mutuo!!!???
    Tambem no Planalto dos Macondes....havia muitos Guidages!
    Um inferno a Serra do Mape!
    Mas...a conselho medico...
    Ponto final

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  10. O J. Leitão tem muita razão. Penso que nunca houve respeito mutuo pela grande maioria dos prisioneiros, de um lado e de outro durante a guerra e mesmo depois, já no tempo de transição. Inaceitável. Conheçi casos sobre o assunto mas como infelizmente tem acontecido em todas as guerras porque a guerra é do mais sujo que há, pelo momento não vou falar neles. O ser humano é incompreensível. Ainda agora em paz se soube o que se passou com os mineiros no interior da mina do Chile assim como na floresta com Ingrid Bettencour e seus próprios colegas prisioneiros. É claro que situações destas só dão para se tentar compreender os porquês mas não justificam os atos. Compreendo plenamente o J. Leitão.

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  11. Aprecio imenso o que escrevem sobre as vossas vivências nas guerras de África!
    Com estes textos, não só do Quito como também do Chico ou do Zé Leitão consigo compreender melhor o que foi essa guerra, que apenas acompanhei pelos jornais e pela televisão(o que podia passar).
    Admiro sobretudo a maneira simples mas literàriamente fantástica e não muito dramática como narram alguns dos episódios que por lá viveram!
    Os episódios mais dramáticos, penso eu, não vos darão muito prazer relatar!
    O da Mariema é sublime!
    Este das Brancas Memórias proporciona ao Quito mais um texto brilhante em que passa do relato de uma viagem longa e cheia de encantos de uma naturaza branca mas perigosa, desertificada, só paisagem, para terminar em mais um episódio, embora de guerra, contado e vivido por um dos companheiros desta reunião que o levou até Terras de Basto e no qual pudemos constatar como mesmo em guerra é possivel haver diálogo, compreensão e tolerância!
    Fiquei também hoje na apresentação do livro do Coronel Moura "Última Missão" a saber um pouco mais sobre a guerra na Guiné!
    Um dos presentes natural de Cantanhede e que era quem me ia levar as botijas de gás a casa, foi um dos que esteve nesse dia em Guidage!

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  12. Por respeito a vós e a tudo por que passaram, limito-me a ter o prazer de vos ler, mas...sem mais comentários.

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