segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A MEMÓRIA DUM TEMPO PERDIDO



O tempo que vivemos se por um lado tem sido fantástico pelas transformações a que assistimos em tão curto período, por outro esmaga-nos entre um passado que retemos como se fosse ontem e um amanhã que se quer transformar rapidamente em passado.
Vai fazer este ano quarenta e dois anos que a América foi à Lua (20/7/1969) e que se começaram a dar os primeiros passos daquilo a que se viria a chamar Internet…
Estamos num tempo em que não há tempo para perder tempo porque o tempo cada vez é mais escasso.
Há cinquenta anos havia profissões consideradas imprescindíveis e reconhecidas socialmente, os moleiros, os latoeiros ou funileiros, os sinaleiros, os sapateiros, os alfaiates e entre outros mais o amola-tesouras. Todo o tempo tinha tempo.

Neste tempo sem tempo, num dia de Inverno, encontrava-me a tomar a bica da manhã à mistura com a leitura do jornal quando ouvi a tradicional gaita do amola-tesouras.
Chovia torrencialmente e, de repente, apareceu-me no outro lado da rua um homem de meia-idade encolhido sobre uma bicicleta que ía empurrando devagar e com custo com uma mão, enquanto a outra segurava no chapéu-de-chuva.
Só uma pessoa que precisa pode vir com um temporal destes chamando a freguesia que não aparece, pensei. Depois lembrei-me, em contra-ponto, daqueles que passam a vida a indicar-nos o lugar para estacionarmos e dos que nos levam a carteira ao mais pequeno descuido…
Olhei para o homem, tinha parado, debaixo de chuva, meteu a mão no bolso dum blusão coçado e encharcado e tirou a gaita, tocou de novo correndo a escala dum lado para o outro. Saltei da cadeira, lembrei-me daquele chapéu-de-chuva que tinha na garagem com uma vareta partida, paguei a bica e chamei o amola-tesouras.
Atrás da vareta que me arranjou lembrei-me que também teria em casa alguma tesoura que já não cortava. Fui a casa trouxe duas tesouras e… a máquina fotográfica. Pedi-lhe autorização para lhe tirar uma foto.
Paguei-lhe mais do que pagaria por um chapéu novo, mas ficou em mim a satisfação de contribuir por prolongar por mais um tempo a memória dum tempo perdido.

Abílio Soares



15 comentários:

  1. Pela mão certeira do Abílio, a propósito de uma figura popular fascinante, voltámos a um tempo sem tempo...

    Em que o espírito gregário se contrapunha à opressão.
    Em que se remuneravam serviços, não se consumiam ilusões.
    Em que se comprava o necessário, não se açambarcavam inutilidades.
    Em que se aprendiam ofícios, não se procuravam canudos só para emoldurar.
    Em que a dignidade e a honra afastavam o roubo e a extorsão.
    Em que a solidariedade se sobrepunha ao egoísmo.
    Em que a poupança evitava o desperdício.
    Em que os jovens eram idealistas e voluntariosos.
    Em que a cultura fortalecia o espírito.

    Obrigado Abílio por nos trazeres estas recordações. Que nos fazem pensar...

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  2. Uma excelente postagem do amigo Abilio. O Tempo é um rio triste. Corre para a josante da vida. Bem nos esforçamos, para remar contra a corrente da nossa existência. Bem nos esforçamos para procurar referências de antanho, que nos mitiguem a dor de uma sociedade sem Valores sem Referências e sem Matriz. Na gaita de beiços do amolador está o Passado. O Nosso Passado. Dos que vão esbracejando por uma visão romântica da Vida.Um abraço ao Abilio. Igualmente ao Rui Felício, cujo comentário também muito me agradou...

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  3. Um belo texto do Abílio com um interessante comentário do Rui.
    Lembro-mo também das lavadeiras, que à segunda-feira iam lá a casa para levar roupa e trazer a da semana anterior devidamente lavada! E do farrapeiro?... cujo pregão era: farrapos, peles, chumbo, cobre, tudo p'ra vender...
    E o tintoreiro, que de tanto trabalhar com as anilinas tinha toda a pele do corpo, completamente azul!... E, claro, morria com pouco mais de 30 anos... e não se sabia porquê!
    Enfim, pessoas e profissões que hoje os putos nem fazem ideia que alguma vez tenham existido!
    Obrigado Abílio por esta pequena, mas enorme, recordação.

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  4. Memórias que se perdem e que são nossas.
    É tudo para perder, as tradições desaparecem todas o que é mau.
    POVO sem memória é ZERO.
    Tonito.

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  5. Abílio José Durão Soares, de seu nome completo, é um homem completo.
    Traz-nos a memória de um tempo ao qual chama perdido para nos demonstrar que, apesar de tudo, nem tudo foi perdido no tempo.
    Não recusa nem critica, bem pelo contrário, as vantagens que nos trouxeram os avanços das novas tecnologias, nos tempos modernos, mas não deixa de nos dizer do seu desalento pela perda de valores de outros tempos.
    Sem saudosismos passadistas, enaltece o valor de quem luta por uma sobrevivência com dignidade e deixa o dedo acusatório aos que se servem de expedientes para sobreviver, sem grandes sacrifícios e com muito pouca dignidade.
    Também não perdoa o consumismo, passando mesmo pela auto-critica, não evitando reconhecer que é um fenómeno transversal e que também ele se deixa afectar pelo fenómeno.
    Mas esta reflexão que aqui nos traz, a propósito de um simples amolador de tesouras, deixa bem clara a sua preocupação pela observação de uma evolução social desajustada e injusta. Como humanista puro, sofre e sabe transmitir esse sofrimento.
    Mesmo que disfarçado por um melancólico toque de gaita do amolador...

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  6. Bela descrição esta a do Abílio!
    Sempre tive curiosidade em saber o porquê desta profissão. E José Franco de 68 anos de idade, natural de Peniche e o filho Rafael Franco de 32 anos de idade, percorrem a região Oeste em cima da bicicleta e ao som da gaita chamam os clientes que pretendem as facas e tesouras afiadas, ou até chapéus arranjados.
    Dizia que...
    “A música da gaita, antigamente diziam que trazia chuva e batia certo, mas agora desde que começaram a subir para a Lua, estragaram tudo. Está tudo estragado e tudo mudado”,
    São os amola tesouras. Reza o ditado que quando passavam e com a sua gaita tocavam a melodia emblemática, que traziam chuva no dia seguinte.
    O amola-tesouras era aquele que ia de terra em terra para afiar as facas e as tesouras e José Franco acompanhado pelo seu filho, fazem isso passando pela Nazaré, São Martinho do Porto, Alfeizerão, Caldas, Óbidos, Bombarral e Peniche de onde são naturais.
    O seu transporte continua a ser uma bicicleta que tem como apetrecho uma roda que amola o que precisassem.
    Esta profissão em vias de extinção parece para já ter continuação com o filho de José Franco, já que também este aprendeu com o seu pai a percorrer as localidades em cima da bicicleta e ao som da gaita avisando as pessoas das terras que o amola tesouras está ali, embora já não faça jus à tradição que traz consigo o mau tempo, mas antes uma tradição.
    Em tempos idos, anos 90…vi um em Àgueda com uma “engenhoca” tipo de Prof. Pardal da Banda Desenhada !!! Um cavalete em madeira era “apeado da bicicleta, e uma engrenagem ligada ao pedais da bicicleta, fazia mover a rodar de amolar!!!
    Há relativamente pouco tempo, também pela Solum andou um “amola-tesouras” !!! Ainda jovem!!!
    Caro amigo Abílio…continua a escrever, tal como o Quito e... o Rui Felício agora mais FaceBookiano!!!
    Abraço

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  7. Adorei o teu texto e ainda mais o teu gesto de boa vontade. Claro que não conseguimos endireitar o mundo mas podemos ver um sorriso, por vezes com os olhos sem brilho, de alguém que, hoje sem utilidade, já foi muito prestativo. Mas quem agora ajuda essas pessoas como o tintureiro, a lavadeira, o engraxador e outros tantos que tanto trabalharam para nós e nossos Pais?
    Fica a saber que eu tenho um saco na bagageira do carro com 3 ou 4 chapéus para arranjar varetas. Imagina.
    Um beijo bom

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  8. Abílio

    Um excelente artigo que falando do futuro, mostrou-nos o lado menos bom da sua evolução até aos nossos dias. Mais teve o condão de nos dar um naipe de comentários de excelente nível.
    Por estes lados, o amola tesouras e navalhas anda de carrinha como podem observar no meu perfil.

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  9. Abílio amigo,
    Gostei imenso do teu texto. Os comentários que já li, dizem tudo. Para quê repetir, aliás, alguns são de " alto gabarito", como diz o Tonito.
    Só não compreendo porque não sais mais vezes de dentro da concha e nos presenteias... vais tentar?
    eu sabia , que não resistirias ao meu humilde pedido! Um grande beijo, continua.

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  10. Bom texto sobre uma profissão que pràticamente já não existe!
    Muito raramente passava aqui pelo Bairro um "amola tesouras", omo normalmente lhe chamávamos.
    Mas os preços que praticava eram realmente muito caros tendo em consideração que comprar o mesmo artigo "novo" ficava mais barato!
    Não há muitos anos ainda lhe pedi para arranjar uma vareta num chapéu de chuva...não perguntei antes quanto seria e depois...paguei mesmo, mesmo caro!
    mas como sabem estes amoladores também consertavam louças, como pratos ou outros objectos em louça.
    O processo do conserto era com os chamados "gatos".
    Era um processo delicado pois tinham de furar a louça para unir os cacos!!
    No meu tempo da arrematação no Grupo de Danças e Cantares dos CTT havia "um quadro" que eram os pregões!
    Um colega meu fazia este pregão do amolador muito bem, dava a "gaitada" e gritava com trjeitos na voz: conserta alguidares, pratos!
    amola tesouras, facas e canivetes, varetas em chapéus de chuva, etc e acabava com mais "uma gaitada"
    Eu por acaso vendia peles...e das boas!
    agora ninguém me compra as minhas...

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  11. Só para dizer que para além do texto também apreciei muito os vários comentários.
    Bom complemento!

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  12. Uma curiosidade sobre o amola tesouras e navalhas. Por estes lados, além deste profissional há também outros que fazem o mesmo serviço. Assim, afiar tudo o que seja lâminas pode-se ir a uma oficina de reparações de bicicletas. Há também uma retrosaria na Rua Ste-Catherine oeste, que afia as tesouras pagando-se ao centímetro.

    Outra curiosidade diferente: o governo levou ontem ao parlamento uma proposta de lei para obrigar o procuradores a voltarem ao trabalho. Interromperam a discussão às 3.30 da manhã para recomeçarem às cinco horas. No fim, tanta hora para acabar por sair a lei como foi proposta pois o governo é maioritário. Vamos ver quando acabará a discussão. Enfim...

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  13. Memórias de um tempo pretérito que vamos desenrolando ao longo do texto,degustando as lembranças e pondo-as em contra ponto com a atualidade.
    Uma boa leitura e com final feliz!

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  14. Na garganta formou-se um nó, um nó que se formou e cada vez mais apertava na medida em que iam desfilando nos meus olhos as palavras amáveis dos amigos que tiveram a gentileza de comentar o que alinhavei.
    O que escrevi saiu no impulso dum momento que surgiu ao ver aquele pobre e sofrido homem naquela manhã de Inverno e de chuva…

    O Rui Felício, igual a si próprio, escreveu um belo poema mostrando “o antes e o depois” de forma acutilante e crítica;

    O Quito com a sua habitual sensibilidade lembra-nos o percurso a que estamos vinculados neste contrato com a vida;

    O Alfredo, recorda-nos outras profissões esmagadas pelo “progresso” e, como Eng. Químico, lembrou-se dos tintureiros que morriam prematuramente com as intoxicações das tintas que manipulavam. Isso fez-me lembrar um que existiu na Rua do Brasil, morreu ainda novo, tinha também graves eczemas tendo deixado uma quantidade de filhos menores;

    O Tonito,com a sua proverbial síntese diz tudo , nem mais nem menos, ponto;

    O Carlos Viana, deixou-me desalinhado e sem jeito com o elogio singular do que escrevi. Só a amizade e a cumplicidade de muitos momentos o transpôs, para além das linhas, numa leitura do que se encontrava numa possível interpretação subjacente;

    Ao Leitão, à Lecas, ao Chico Torreira, ao Rafael à Olga e à Celeste a todos devo a amabilidade das palavras ditas.

    A todos os meus agradecimentos.

    Abílio

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