segunda-feira, 19 de novembro de 2012

ENCONTRO COM A ARTE

CONTOS
 da 
Daisy
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                             CATARINA




        A Catarina foi sentada na cadeira. A perna magoada estava ligada e eu fixei-lhe os olhos azuis, muito sérios, e as bochechas rosadas.
         — Doeu-te muito, Catarina?
        Muda, ela contunuava a olhar-me fixamente. Doeu com certeza. Mas bochechas proeminentes, já nada mostrava que estivesse a sofrer qualquer dor. Não doia. Agora.
        — Mamã, a Catarina chorou?
        Não chorara. Só quando a voltou, para lhe aplicar a ligadura, ela pronunciou um gemido. Mas não chorara. Aquilo era o hábito: não gostava de estar de barriga para baixo.
        Senti-me aliviada. O remorso do que lhe havia feito tinha-se dissipado um pouco por saber que ela não sofrera.
         Nunca mais a atiraria para o chão. Nunca mais me zangaria. Com ela eu nunca me zangava, mas quando alguma coisa me apoquentava, era a pobre Catarina que pagava porque, dócil, sem um queixume, era a única pessoa lá em casa em quem eu podia descarregar a minha cólera.
        Peguei-lhe na mão rechonchuda e acariciei-lhe os cabelos loiros, numa tentativa de me fazer perdoar. O vestidinho não lhe tapava a ligadura e aquela acusação ao meu comportamento, apoquentava-me. Retirei, de um dos meus cabides, as calças de malha. Vesti-lhas, cuidadosamente, abotoando-lhe o casaco e depondo-a, de novo, na cadeira. Beijei-lhe a testa.
        — Minha pobre Catarina!…
        Mas ela precisava de descansar.
        Peguei no livro que estava ao lado da cadeira-de-baloiço. Mas não consegui ler. Sentia, postos em mim, os olhos da Catarina, submissos, como os do perdigueiro que o tio Pedro trouxera no sábado, para a caça.
Continuei com o livro na frente, a tapar-me a cara e a ver, mentalmente, o cão a correr, lá em cima, no souto, atrás das lebres, das perdizes e dos coelhos invisíveis, depois de ter soado o tiro. O cão corria, corria, corria. E o tio Pedro, atrás, andava devagar, seguro de que o animal lhe traria o que pretendia. Com os binócolos do avô vi, depois, o perdigueiro voltar de encontro ao dono com a sua presa. Da boca escorria-lhe um fio vermelho e a cabeça do animal caçado, pendente, sem vida, balouçava, à medida que o cão-caçador pusava as patas no chão, compassadamente. O tio Pedro é mau. O tio Pedro é mau!
        — Vamos ter perdises para o jantar.
        — Não quero!
        — Mas é bom, querida.
        — Não quero!
        — Bom, bom. Vamos lá ver…
        — Já disse que não quero!
        Quem pagou foi a Catarina.
        A mãe correu a socorrê-la. E tratou-a. minha querida Catarina! A perna partiu--se.
        — Joana!
        Ele aí vem. Abriu a porta do quarto e mostrou-me dois animais mortos. As penas da cabeça estavam agarradas umas às outras e manchadas de vermelho.
         — Trouxe-te duas perdizes. Só para ti.
         A cara dele ria, ria. Mostrava os dentes muito brancos. Deixei cair o livro que tinha na mão. A Catarina na sua cadeira, com a perna ligada, continuava a olhar para mim muito calma. E o tio Pedro esperava que eu corresse para ele e lhe agradecesse o presente. Dentro de mim, começava a correr um calor que me afogueou as faces. Depois, as pernas começaram-me a tremer e as mãos não estavam quietas. Eu não via a perna ligada da Catarina. Não via os seus olhos azuis submissos. Agarrei nela, elevei-a no ar e deixei-a cair, pesadamente na pedra do fogão-de-sala, onde o lume, por desnecessário, não crepitava. Os pedaços da boneca espalharam-se pelo chão. A cabeça de louça, oca, dividiu-se em três pedaços. Só a perna ligada ficou inteira. Minha Catarina!… Desfeita. Os olhos azuis, duas pequenas bolas que brilhavam, foram parar aos pés do tio Pedro, que me olhava, abismado. E a Catarina já não tinha cura. E não havia cirurgião que lhe valesse!…
        que tens, Joana Maria? Não gostas de perdizes?

9 de Setembro de 1971



7 comentários:

  1. Os que não têm voz, os que são obrigados a acomodar-se, os que se encontram no fim da escala, são sempre os que sofrem a rebelião daqueles que, no degrau antecedente da hierarquia, neles descarregam a prepotência de que se acham vitimas.

    E normalmente, fazem-no de uma forma mais brutal do que o motivo que lhe está na origem remota.

    Aprendi isso quando saí da tropa e vi, anos mais tarde, um soldado amanuense, agora agente da polícia política, à qual se candidatara e fora aceite, vingar de forma desumana, em pessoas inocentes, as suas frustrações, a revolta e as injustiças de que tinha sido vitima às mãos de um carrancudo sargento que durante a comissão na Guiné lhe tinha feito a vida negra.

    A mensagem que recolho deste conto está, portanto, e para mim, muito para além do episódio que a Daisy tão imaginativamente idealizou e enquadrou num cenário descritivo perfeito que nos coloca num quadro rural em que quase nos sentimos espectadores e personagens.

    Porque a Catarina estava no fim da linha hierárquica e a Joana, mau grado gostar dela e saber que nenhuma culpa lhe cabia, só na Catarina e em mais ninguém podia descarregar a sua cólera.
    Ao ponto de a desfazer em mil bocados..

    Parabéns Daisy por este conto que foi, quando o li pela primeira vez, um dos que mais gostei, de toda a colectânea.
    Uma referência igualmente para a bela ilustração de Zé Penicheiro.

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  2. Há um mundo interior que nos habita. E, se muitos conseguem extravasar as suas emoções e sentimentos, outros há, que blindam as chagas da alma a cadeado, muitas vezes abafando a revolta que os oprime.
    Este conto, com a pena bem identificada da Daisy, tem para mim uma curiosidade : é que a estrutura do texto, tem muito a ver com aquilo que é recorrente na prosa nosso amigo e escritor que me antecede neste comentário, apesar de se perceber, à vista desarmada, que cada um tem a sua própria matriz de escrita.
    Catarina, foi alguém a quem a autora deu vida própria, para, no fim, nos apercebermos que se tratava de uma simples boneca.
    Como o Rui Felício disse - e bem - Catarina estava no fim da linha hierárquica e foi a vitima de uma revolta surda que explodiu ...
    Quantos ... mas quantos ... tiranetes andam por aí, poluindo o Universo, a fazer dos seus iguais, vitimas das suas frustrações?
    Conheci um. Começou como simples moço de recados e guindou-se a posição relativamente importante, no quadro de uma empresa. Era um terror. Um pedante, que passeava a sua petulância, imbecilidade e uma competência que não tinha. Mas diz a milenar sabedoria popular, algo que continua a ser transversal aos tempos: nunca sirvas a quem serviu ...

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    1. Apropriadamente, o Quito condensou o seu raciocínio com um excerto do adágio popular "nunca sirvas a quem serviu,nem peças a quem pediu".
      O excerto escolhido diz tudo...

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  3. ASSUNTO.
    Assim Gosto.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  4. Mais um excelente conto da Daisy e que com todo o prazer aqui vos deixo!

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  5. Quase me revejo dentro deste lindo conto...visto "as roupagens" da Catarina quando acusava o Rafaelito ao meu pai e, hoje, reconheço tê-lo feito por ciúmes...achava que a minha mãe gostava mais dele do que de mim!Então os castigos do meu pai embora gostasse muito do mano Rafaelito...
    Fiz mal ou bem a transposição,pouca importa, mas foi o que senti ao ler a Daisy, contadora de maravilhosos contos.

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  6. O conteúdo da mensagem que neste conto nos é deixado pela Daisy, quando ela era ainda menina e moça, deixa-nos o sabor do amargo-doce que ela tão bem sabe cultivar.
    Obrigado, Daisy.

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