segunda-feira, 19 de agosto de 2013

ELOGIO A UM TRASMONTANO


Setembro de 1967...

Depois de seis meses em Mafra, promoveram-me a aspirante e destacaram-me para a Companhia Disciplinar de Penamacor onde iria dar instrução a um pelotão de soldados recrutas daquela unidade militar.

O desgosto de ser colocado num quartel disciplinar nos confins da Beira, foi amenizado pela satisfação de, juntamente comigo, terem sido para lá também enviados mais cinco aspirantes da mesma fornada de Mafra. Eram o Sá Carneiro, o Moreira, o Bicho e o Noronha. Coincidência óbvia, todos tinhamos ingressado na tropa à revelia da lei de adiamento escolar, o que tinha sido claramente um castigo em que o regime era fértil para tentar reeducar e punir aqueles que na vida académica tivessem ultrapassado as baias do bom comportamento politico.

A colocação em Penamacor parecia ter sido o prolongamento desse castigo nunca assumido nem declarado, mas por demais evidente.
Mas se essa era a intenção, enganaram-se.
Mandarem cinco aspirantes para darem instrução a um único pelotão de soldados foi uma ingenuidade.
Eram oficiais a mais para tão poucos soldados. Distribuimos as tarefas pelos cinco o que dava pouco mais de uma hora diária a cada um, libertando-nos o resto do tempo para darmos uns passeios pela Covilhã, Caria, Fundão, Idanha ou Castelo Branco.

Quanto aos soldados recrutas, havia de tudo.
Desde antigos prisioneiros do Forte de Elvas que ali tinham cumprido pena por crimes de roubo ou homicidio, e que depois eram encaminhados para Penamacor, até simples refractários que tinham fugido à tropa e capturados, para ali assentarem praça.

Os serviços normais de secretaria, cozinha, sentinelas, intendência, eram assegurados por uma vintena de soldados e meia dúzia de cabos, oriundos de outras unidades, três sargentos, e nós, os cinco aspirantes, todos comandados pelo Capitão Mota, que ficou conhecido anos mais tarde por representar o MFA em Timor.

No inicio de Dezembro desse ano, ficou combinado que os soldados, cabos, sargentos e os aspirantes, estipulassem entre si os que iriam passar o Natal a casa e os que ficariam no quartel para assegurar os serviços minimos de funcionamento, invertendo-se a divisão na altura da Passagem de Ano.
Coube-me a mim, ao Sá Carneiro, ao Sargento Canavarro e a dez soldados e dois cabos irmos a casa pelo Natal e ficarmos no quartel no Fim de Ano.
O Capitão Mota, claro, ficaria de fora desta partlha, por ser o comandante e porque morava perto, na Aldeia do Bispo.

Na noite de Fim de Ano, estava eu de Oficial de Dia, o sargento Canavarro de Sargento de Dia e o cabo Lemos de Cabo de Dia.
Os cinco sentinelas estavam nos seus postos e na Casa da Guarda, pernoitavam outros tantos soldados para revesarem os camaradas no fim de cada turno.
Pelas 21 horas, o Canavarro acompanhado pelo Lemos, fizeram uma ronda pelos postos de vigia, entregando-me o relatório respectivo.
Recebi o papel, esperei que o Sargento saisse do meu gabinete, mas, em vez disso ele mandou sair o cabo, fechou a porta, e disse-me:
- Como vê está tudo em ordem, meu Aspirante.
Acenei que sim com a cabeça, mas percebi que o Canavarro queria mais qualquer coisa, e por isso incitei-o a prosseguir
- Sabe que eu tenho casa aqui perto, na Meimoa, onde está a minha familia toda e eu gostava de ir lá passar o Fim de Ano.
- Mas você sabe ainda melhor do que eu que não pode sair do quartel estando de serviço de Dia.
- Eu sei, mas isto aqui não se passa nada e se houver azar o meu Aspirante pode me telefonar para casa e eu ponho-me aqui num quarto de hora.
- Bem, espero que não haja azar, mas vá lá homem!
O Canavarro fez-me uma continência irrepreensivel, desfez-se em mesuras e agradecimentos e saiu porta fora.

O Sá Carneiro veio ter comigo ao gabinete e eu disse-lhe:
- Eh pá, o que estás ainda aqui a fazer? Tu não estás de serviço, tens carro, pira-te daqui, caraças!
- Pois é, eu era capaz de ir a Castelo Branco, mas assim sozinho...
Ainda se tu viesses comigo...
- Sabes bem que não posso, pá. Estou de Oficial de Dia, respondi-lhe eu.

Já não sei com que argumentos, a verdade é que o Sá Carneiro tantos me aduziu que dei por mim a chamar o cabo Lemos:

- Ouve lá , oh Lemos, és capaz de tomar conta disto enquanto eu vou ali com o nosso aspirante Sá Carneiro? Eu lá para as duas da manhã estou de volta.
- Claro! Respondeu o Lemos. Podem ir à vontadinha. Fiquem descansados que eu já tenho dois anos de tropa e sei muito bem que nestas datas nunca se passa nada.
Desfardei-me, meti me o MGA do Sá Carneiro e saimos pelo enorme portão de ferro que o Lemos escancarou, trancando-o a cadeado logo que nos afastámos em direcção a Castelo Branco.

Regressámos às três da manhã depois de termos feito a passagem de ano num baile da capital de Beira Baixa.
O Lemos apareceu-nos ao portão, de semblante carregado, aflito, abriu-o de par em par e voltou a fechá-lo com estrondo.
- Estou lixado! Apareceram aqui dois gajos à civil, pouco depois da meia-noite, montados num bruto Mercedes preto.
Um deles saiu do carro, e disse-me para eu chamar o Oficial de Dia.
- Para o chamar é preciso que me diga quem é, disse-lhe eu.
- Sou o Brigadeiro Mariano e venho inspeccionar esta Unidade!, berrou-me o gajo com voz grossa.
Mexe-te, faz o que te mando! Chama o Oficial de Dia!
- Sei lá quem o Senhor é. Identifique-se, se quiser que eu informe o nosso Aspirante.
- Era o que me faltava eu identificar-me a um cabo. Olha lá, oh militar, vou participar de ti e vais levar uma porrada que tu nem sonhas! E enfiou-se no carro esbaforido que arrancou para a estrada.
    - Ninguém te pode castigar pelo que fizeste, disse eu ao Lemos.
     Depois do recolher, a porta de armas só se abre em casos muito especiais, com autorização do Oficial de Dia e a só a autoridades militares devidamente identificadas.
    Se ele não se quis identificar, não tinhas nada que me chamar para eu lá ir.
    Quando o comandante recebeu a participação do Brigadeiro, encaminhou-me o papel e eu devolvi-lho no dia seguinte, com o meu parecer de que o cabo Lemos deveria, em vez de ser punido, ser louvado, pelo exemplar cumprimento das suas obrigações enquanto Cabo de Dia.

    Se o Lemos não fosse um rude transmontano de Vila Flor, de antes quebrar que torcer, quem se tinha lixado era eu.

    Rui Felicio

10 comentários:

  1. Disciplinados para a disciplina e auto-disciplina rigorosas cuja fama tranparecia como elite especial "deformada psicológicamente"...
    Esta tua descrição põe de rastos tal impressão...
    Afáveis,camaradas e que raio gozar a noite de Fim de Ano era uma tentação!
    Em cadeia, se deixaram entusiasmar para abandonar o "casarão" mas com a boa camaradagem e inteligência se safaram...Bem haja o transmontano "com eles no sítio" mas a tua capacidade de improvisação rápida e perspicaz não lhe ficarias atrás. E valeu a pena a festa? Espero que sim.Valeu a pena conhecer mais um pedacinho da tua imposta história militar!

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  2. Memórias de um ex-alferes ...

    Penamacor é terra de mistérios. É um degredo ali para os lados do Terreiro das Bruxas. E de bruxas, a mais falada pelos seus dotes de desafiar o além, é a bruxa da Meimoa. A terra do Canavarro.

    Porém, há quem faça apelo às suas raízes e o Canaveira, meu amigo e advogado de profissão em Lisboa, lá me vai dizendo que tem que ir a Penamacor ver como estão as Colmeias e as suas abelhas.

    Penamacor, não é o talefe do mundo. Mas quase. Daí, o local ideal para uma espécie de presídio militar. Uma forma de castigar todos. Os desalinhados e os que vigiavam os desalinhados, o caso do Alferes Felício.

    O bailarico em Castelo Branco ia dando mau resultado. Mas mesmo num terreno árido, pode aparecer uma atitude corajosa de alguém que soube regar a planta da amizade e camaradagem. Mas o alferes, compreensivo como sempre foi para os seus inferiores e comandados, também merecia o risco que o Lemos transmontano correu.

    Boa recordação, Rui. Memórias que ficam...

    Abraço

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  3. Que vigaristaaaa!!.., sr Aspirante!!
    Fernando AZENHA

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  4. Há um provérbio que diz: Ao Aspirante e ao borracho Deus põe sempre a mão por baixo!... Neste caso, Deus era transmontano!...

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  5. Estava à espera de uma referência à palavra trasmontano que propositadamente escrevi com duas grafias diferentes ( trasmontano e transmontano ).
    É das poucas palavras que admite dupla grafia, mas pensava que alguém iria assinalar o "erro" de uma ou de outra.
    Digamos que era um passatempo encoberto...

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  6. Gostei e mostra-nos que a tropa também teve as suas situações curiosas e engraçadas.
    Quanto à lição de português, nunca tinha dado por isso. Para mim que ia lá acima, sempre foi transmontano e nem reparei no assunto. Jamais diria alguma coisa porque os advogados têm tendência para usarem as palavras correctamente. Vai-se aprendendo até partir.

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  7. Aqui de Santa Luzia, mesmo enrascado para ma adaptar "sem rato", gostei de mais este teu texto, delicioso, e que põe bem à evidência a fibra dos transmontanos, de que tenho como referência o meu sogro e familia que eram transmontanos!Lutadores por uma vida melhor, fosse a que distância fosse, desenrascados e amigos do próximode um transmontano
    E o meu cunhado Zé Rocha é outro bom exemplo de um transmontano dos três costados.Muito amigo que foi do seu amigo Jaime Neves!

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  8. Esta historia também a vivi no Regimento de Saude em Coimbra!Nos 9 meses que là estive, antes de embarcar para Angola,passei muito tempo em casa!A minha Mae temia que um dia ou outro, aparecesse là em casa a Policia Militar, à minha procura!
    Nas poucas vezes em que estive de "Sargento de Dia" apareceu-me là ao principio da noite, um amigo, a convidar-me para uma noitada com 2 francesas!!
    Claro que, como o Rui o fizera, larguei o serviço e là fui até às 5 da manha, aperfeiçoar o meu francês!!!!Por isso, hoje sou um às!!!

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  9. É evidente que o Cabo Lemos merecia um louvor pelo rigoroso cumprimento do RDM (penso que era assim que a "coisa" se chamava). Bem pelo contrário, o tal de Brigadeiro Mariano bem merecia uma "porrada", por falta de cumprimento do mesmo.
    O Aspirante bem se "safou" graças à pertinácia de um e à estúpida arrogância do outro...

    Lembro-me que um dos "cagaços" que apanhei na tropa teve a ver com o facto de ter "baldado" um amigo durante um fim de semana em que ambos estávamos escalados. A ideia foi a mesma, durante o fim de semana "não se passa nada", mas passou-se e o que nos valeu foi o facto de na FA o tal RDM ser muitas vezes esquecido.
    Esse amigo faz hoje (ontem) 71 anitos e também por aqui anda. O resto deixo à vossa imaginação...

    Rui Felício, obrigado por mais este teu belo naco de prosa; ao removeres as tuas recordações consegues soltar outras...
    Aquele abraço.

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