quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O ELÉTRICO

O ELÉCTRICO

         Não é possível falar ou escrever sobre o Calhabé do meu tempo sem falar do Carro eléctrico, o qual, num momento anterior, já se havia afirmado também como grande incrementador do crescimento citadino, em geral, e do Calhabé, em particular.
      O eléctrico surgiu em 1911, imposto pela pressão demográfica dos novos 
núcleos habitacionais. Antes dele, as pessoas serviam-se de viaturas de tracção animal para se movimentarem de um sítio para outro. Em relação a estas, o eléctrico veio oferecer maior conforto, maior velocidade, maior capacidade, maior economia, mais regularidade, mais limpeza e outras condições de asseio das ruas. Enfim, mais tudo…Além disso, e não menos importantes, foram os benefícios colaterais que veio proporcionar:
      - A instalação dos cabos elétricos ao longo da rede fez com que a electricidade fosse levada a novas zonas da cidade, o que acabou por permitir uma mais rápida eletrificação pública e domiciliária dessas zonas;
      - Fez com que as ruas por onde os eléctricos passavam fossem pavimentadas e, em muitos casos, alargadas. Foi o caso da Rua dos Combatentes da Grande Guerra e de grande parte da Estrada da Beira;
      - Foi responsável, através de posturas municipais, por uma mais eficaz ordenação do trânsito, que, até então, vivia em completa anarquia;
      - Finalmente, favoreceu a transformação física, geográfica e social e, até, o próprio dècor da Cidade.
      O eléctrico do Calhabé – o 5 – foi em 1968 destronado pelo troleicarro e, em 9 de Janeiro de 1980, todos os simpáticos eléctricos desaparecessem das ruas de Coimbra por onde andaram durante 69 anos, recolhendo de vez à Rua da Alegria. Agora, quem os quiser ver pela primeira vez, encontra-os no Museu dos Serviços Municipalizados. Mas nem todos ali se encontram. Parte deles foram cedidos a jardins de infância, onde durante muito tempo ajudaram as crianças a brincar, a aprender e a sonhar. Boa e suficiente razão! Infelizmente, nem todos tiveram a mesma sorte!... Mas Coimbra sem eléctricos ficou mais pobre, porque ficou mais triste. Aquelas linhas de aço que percorriam a cidade eram veias por onde circulava a vida. O eléctrico, nas pessoas que levava dentro de si, transportava a alma, a alegria, a cor e o romantismo desta Terra.
      O eléctrico está tão indelevelmente ligado à minha adolescência, que, ainda hoje,- acreditem ou não- - , eu viajo nele por essas ruas do meu passado. Mas já não vão comigo os camaradas do Liceu, nem o Curto, nem o Nazaré…apenas me acompanha o desfilar do pensamento, das recordações…

O MEU ELÉCTRICO
VIAGEM PELA MEMÓRIA
I
Era alegre o meu eléctrico,                      
Era alegre e amarelo,
Em letras pretas, cansadas,
Há tanto tempo pintadas
Alçava alto o brasão:
Era o 5, Calhabé-circulação
II
Já lá vem! E tráz chora!”
Na Estrada da Beira
Um da malta, vigilante;
“Já está o cabo a mexer”!
E nós, ao vermos aparecer
O elétrico amarelo,
Éramos sempre os primeiros
A saltar como guerreiros
À conquista dum castelo
III
Corpos ágeis pendurados,
Capas ao vento flanando
Vozes gritadas, risos cantados,
Límpidos a irem p´ro céu,
As bocas iam soltando.
Era a malta do Liceu!
IV
Lá dentro, arfava o Curto
Espremido no meio de nós,
O bigode retorcido,
Pescoço todo grossura,
Calças a irem pelo cós.
Um trato fino e bondoso
Desmentia a catadura.
Estaline lhe chamavam,
Em voz baixa, já se vê,
Por ser um nome perigoso,
Todos sabíamos porquê…
V
De alicate no ar
Repetia sem cessar
O estribilho da cantiga:
“Por favor, deixem passar”
E a malta ia encolhendo
P´ra lhe caber a barriga.
“pouco barulho, senhores!”
E nós, “bichos” do Liceu,
Qual senhores?!
Sentiamo-nos já doutores!
A subir os Combatentes,
O pobre eléctrico gemia
“Dá-lhe guita”! – Um dizia;
“Mete a nove, ó Nazaré”!
Outro lá atrás, na coxia.
Meio dentro, meio na rua
Gritava como um danado
“Capicua!...Capicua!...
VI
Corria toda a cidade
A transbordar de ilusões,
Bilhetes de cinco tostões
Era o preço da Saudade!

Um dia alguns doutores
Puxando da sua ciência
Disseram: paciência…
Está velho, está cansado,
Não dá conta do recado…

Arrancaram-lhe as artérias
Por onde lhe corria o sangue.
E às espurcas deletérias~
O entrgaram exangue.
Ficou mais triste a Cidade
E dele ficou memória,
Mas daqueles que o mataram
Já não se lembra a História.

Subi no Largo Zé Maia,
Desci aos Arcos do Jardim,
Meu elétrico amarelo,
A viagem chegou ao fim!

De Fernando Rovira-O Calhabé do meu tempo-1930 - 1960
Um abraço Fernando



     

12 comentários:

  1. Companheiro, muito Obrigado pelas boas recordações.
    Um Abraço.
    Tonito.

    ResponderEliminar
  2. Uma bela e documentada viagem ao passado. Nem me tinha apercebido que os eléctricos já tinham desaparecido há mais de três décadas. Um meio de transporte limpo e citadino. Como esquecer aquele seu ruído tão característico, a subir a Rua da Manutenção Militar. O Revisor e o Guarda - Freio. O tlim-tlim das chegadas e das partidas. Hoje, é tudo uma saudade. Os tempos mudaram. E os homens também. Vivemos ao ritmo ditatorial dos ponteiros do relógio. Uma lástima, como me disse um dia um açoreano em determinado contexto e eu concordei. É uma lástima digo agora eu, que já não haja tempo e até, por vezes e muitas vezes, sensibilidade para nos sentarmos por um momento de recolhimento no Penedo da Saudade ...

    Gostei da postagem. Obrigado

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Totalmente de acordo, Quito. Actualmente acha-se "normal" que a vida seja a correr e em competição.

      Eliminar
  3. Esta viagem pela memória usando o eléctrico fez-me acompanhar-te de uma forma alegre pela saudade e não pela nostalgia...
    Tão ávida de recordar que revivi cada pormenor que viveste então e eu também.
    Sempre andei de transportes públicos ou a pé.Nunca tive carro.
    Eram amizades que construíamos nos eléctricos não só pelo horário comum mas também pela tradição de conversarmos com o/a colega do lado.
    Havia uma senhora que viajava comigo até S.José e,por acaso morava aqui no bairro, aproveitava descascar as ervilhas durante a viagem...Obrigada Fernando.

    ResponderEliminar
  4. Acabadinho de chegar duma cidade onde os eléctricos ainda captivam os cidadaos!Refiro-me à belissima cidade suiça de BASILEIA!Foi a primeira vez que là fui de comboio!Muito pràtico pois em 35 mn estamos là!Como é obvio, com a crise que vai por esse mundo fora, fomos là pôr umas massas:tagliatella, esparguete, spaëtzle...Facilimo!!!Basta irmos de comboio para ninguém nos chatear!!!Na alfândega, tava tudo às moscas!!Deviam ainda estar a festejar a vitoria ontem do BASILEIA ou entao a ver o sorteio da Liga Europa!!!
    Là, temos electricos de todos os feitios e o coraçao da cidade dà muito pouco espaço aos automoveis!!Preferência às bicicletas!!!!Quem é que ai aceitava ir de bicicleta do Bairro até à Baixa?Isso so existirà daqui a 50 anos, talvez!!!

    Levàmos 2 garrafas de LICOR BEIRAO connosco que fizeram um figurao dos diabos!Até passaram na TV Suiça em directo!!!Tenho que construir o texto que explica isso!

    Jà agora, como curiosidade, 2 bilhetes de comboio COLMAR-BASILEIA (ida e volta)tarifa senior = 26,80€ (13,40€ cada)!!!Uma maravilha!

    ResponderEliminar
  5. Parabéns.
    Também tenho saudades do eléctrico. Agora posso andar neles em Lisboa. Mas, em Coimbra ... tinha qualquer coisa de especial!

    ResponderEliminar
  6. Uma pena que os eléctricos tenham desaparecido de Coimbra.
    Não só por razões nostálgicas, mas também porque continua a ser um transporte cómodo, barato e potenciador de um melhor ambiente atmosférico nas cidades
    Felizmente que o municipio lisboeta está gradualmente a recuperar muitas das linhas que já tinham sido abolidas.
    Não é por acaso que muitas cidades europeias continuam a privilegiar este meio de transporte.
    Sem querer ser exaustivo, estou a recordar-me de Zurique, Budapeste, Praga, Viena, entre outras.
    Seria uma boa ideia que Coimbra pudesse iniciar a sua recuperação...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E não sei se seria assim tão difícil... e os custos seriam certamente compensados pela atracção de turistas (para já não falar do bem estar e amor próprio dos habitantes de Coimbra).

      Eliminar
  7. Meu caro Fernando Rovira, muito obrigado por esta evocação que para além da história da Cidade abarca também muito do romantismo que a envolve.
    Penso que foi um erro, em Coimbra e praticamente em todo o país, a extinção deste meio de transporte. O mais barato, o menos poluente, Quando se impunha a sua modernização, com vista a um maior conforto dos seus utilizadores, optou-se pela extinção. Os poucos que existem a circular em Portugal, são atractivos turísticos. Não é mau mas é pouco.
    Enfim, são os custos da chamada falsa modernidade que tão elevado preço nos tem feito pagar.

    Penso que há um lapso quando se diz que " O eléctrico do Calhabé – o 5 – foi em 1968 destronado pelo troleicarro ".
    Que me seja perdoado o atrevimento mas penso estar em condições de garantir que em 1962 já era o troleicarro que imperava, com o letreiro S.José.

    Grande abraço e obrigado por esta excelente evocação.

    ResponderEliminar
  8. Se me permitem entrar, e porque também morei no Bairro emtre 1950 e 1959 , na rua E, 16 (rua do Clube), digo-vos que também foi com muita pena que assisti ao fim dos Eléctricos para o Calhabé.

    Utilizava a paragem que ficava à porta do Café Brasil, que dava muito geito para quem saía da Escola do Professor Franco, ou para quem era do Bairro e "frequentava" a passagem de linha sem guarda.

    Recordo-me também do som especial que faziam ao subir a Av. Sá da Bandeira, como citou o Sr. Quito, das viagens até ao D. João III no 3 vermelho ou 3 branco (via Penedo da Saudade)e pelas viagens "penduradas", porque no Eléctrico, cabia sempre mais 1.

    Mato soudades no V/Blog e nas fotigrafias e vou assistindo de longe aos Vossos encontros.

    Agora de longe, viajo no Eléctrico da saudade.
    Um abraço a toda a malta do Bairro
    Vitor Almeida

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É um prazer caro amigo.Entre sempre que quiser.Os comentários dos amigos que já viveram, ou vivam no nosso Bairro, são uma mais valia para o blog.
      Um abraço

      Eliminar
  9. Muito obrigado.
    Agradeço a oportunidade de rever os nomes que me acompanharam na Escola do Professor Franco, no Cavalo Selvagem, no D. joão III...nos anos 50.
    Quando passo por Coimbra, não falho uma ida ao Bairro numa passagem de romagem ou de despedida.
    Muito obrigado
    Vitor Almeida

    ResponderEliminar