quarta-feira, 26 de março de 2014

A MULA ...




Um olhar doce ...

Um sério aviso a todos os preclaros leitores deste desastrado texto: 

A prosa é de uma ruralidade que até impressiona. Portanto, todos aqueles que usam sapatos de pelica com fivela e punhos de renda, aconselho a passarem à frente. O melhor, é afundarem o nariz e os óculos nas notícias do “Correio da Manhã”. Sempre sofrem menos.

Era uma vez uma mula. Gorda e lustrosa, assentou arrais aqui, num quintal vizinho. Foi o Tozé que a trouxe, presa por uma corda. 

Quando a vi, simpatizei logo com o animal. Tem um olhar doce, enquanto lhe vou fazendo festas no focinho e ela, de agradecimento, zurra que até parece o timbre de voz da Tina Turner, salvo as devidas proporções

Mal se apanhou no quintal atapetado de erva fresca, meteu o corta - palha no chão e começou a comer desalmadamente. Não de fome, mas de gula. A alegria era tanta que se urinou toda, com um jacto mictório que mais parecia a Fontana di Trevi. De novo, salvo as devidas proporções

O Tozé, de olhos arregalados a coçar o cocuruto do boné aos quadrados que trazia na cabeça, via a mula a limpar erva à velocidade do TGV e começou a ficar incomodado. 

É que o quintal não é dele e a bicha era pouco dada a cerimónias. Então, ameaçou que lhe partia dois dentes com um paralelepípedo, para depois se rir com a minha cara de citadino inocente, que até estava a acreditar. O Tozé é um bem - disposto da vida. Trabalha de sol a sol nos campos e ainda tem tempo para cuidar do seu restaurante:

- Tó Zé, hoje quero comer uma coisa ligeira … pode ser umas batatas fritas e uma omoleta …

- E o Senhor Pereira deseja a sua omoleta feita de preferência com ovos ?

Mas hoje, quem gozou fui eu. A saborear uma sopa de grão com couves, atirei-lhe muito sério e um ar preocupado:

- Tozé, acho que te roubaram a mula …

O homem, se não tivesse uma barba cerrada, eu diria que ficou pálido e quase deixou cair ao chão a bandeja dos grelhados …

- Mas porque é que diz isso?

- Fácil … não a ouvi zurrar …

Então faça-me um favor – dizia ele inquieto – espreite pelo buraco da fechadura do portão …

Espreitei. O buraco da fechadura do portão opaco em ferro maciço é enorme, mais parece um olho de elefante e o animal lá estava. Ou por outra, estava o olho dela do outro lado, também a olhar pela fechadura e ficámos quase pupila com pupila. 

Pressentiu gente e veio indagar. Estava no seu direito. Sentindo que poderia ser o dono, zurrou de alegria, atrevo-me até a dizer que se excedeu, subiu de estatuto e relinchou como o cavalo rampante do Gary Cooper. Outra vez, salvo as devidas proporções …
Quito Pereira          

9 comentários:

  1. Gosto com todas as proporções.
    Tonito.

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  2. maria helena morgadomarço 26, 2014 5:06 da tarde

    Não era a mula do Ti Alfredo!

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  3. Escorreito, bem humorado, com o cunho da tua lavra...bem relinchado- com as devidas proporções....

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  4. Grande coice... salvo as devidas proporções!

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  5. Uma verdadeira MULA DA COOPERATIVA!!!!!!E nem sequer deu um coice no telhado!!!!Como podem constatar, ainda nao me chegou a Alzheimer!!!!
    Lindo texto Snr.Pereira!!!

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  6. Pupila com pupila com a mula como te sentiste Quito?
    O olhar era mesmo doce...amigos para sempre se tornaram.
    E a vida da aldeia a vamos conhecendo com bom sentido de humor!...

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  7. Está aqui uma prosa que até parece ter sido escrita por William Shakespeare, salvo as devidas proporções...

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  8. Estava muito bem sentado quando ouço: - Olha, se queres rir-te vai ler a mula do Tozé, salvo as devidas proporções … Estória bem contada.

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  9. Salvo as devidas proporções, venho dizer ao Quito que, também eu, tive uma mula, a Carriça, que prestava serviços na agricultura na quinta da minha tia e que nos deixava montá-la, os três primos, e nos levava até à nora onde rodava, vezes sem conta, com uns " óculos"para tirar a água do poço.
    Para além dessa função ainda era atrelada a uma carroça e levava-nos até à praia da Figueira, que ficava a cerca de uns 2 km.
    Tenho várias fotografias com a Carriça, numa infância muito feliz!

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