quarta-feira, 17 de setembro de 2014

DOIS ESTRANHOS NA CIDADE ...




Amato Lusitano

O sol radioso chegou e derramou-se sobre a cidade. Um calor seco e penetrante, inunda ruas e vielas. Vielas silenciosas, de passeios debruados a granito. Aqui e ali, pequenas lojas. À porta, os comerciantes olham os poucos transeuntes, na esperança de entrar algum cliente, a regatear uma qualquer peça de mercadoria apetecida.

Hoje, sou um entre os poucos, que vagueiam pela urbe sem vida. Na avenida principal, os carros contam-se pelos dedos. E ali, debaixo das velhas tílias da Praça Rainha Dona Leonor, a esplanada do café está deserta.

Apenas uma criança, de calções vermelhos, lambuza-se com um gelado, que vai lambendo vagarosamente, ao ritmo melancólico do Tempo.

Continuo a minha caminhada errante. Na Praça da Devesa, a água dos muitos repuxos, tenta lutar contra a violência da canícula. Mas nem uma aragem corre, que permita um salpico refrescante que me afague o rosto.

Depois, conduzindo lentamente o velho carro, escondo-me por detrás da Sé da cidade. É um outro mundo. Deparo com avenidas largas e prédios novos.Novos e vazios de gente. Uma zona da cidade sem alma, votada ao silêncio e ao quase abandono, que o calor ainda mais faz pronunciar. Ali, o aglomerado urbano, geme de sofrimento. O peso da interioridade, aperta como um garrote. 

Deixo o carro estacionado num parque deserto, refém de uma temperatura asfixiante. Penetro pelas ruas estreitas. Alguém que me deve conhecer, saúda-me com um sorriso e uma vénia. 

Não me é estranha, aquela cara. Como um autómato, levanto o braço numa saudação apressada e sigo em passada lenta. Desaguo num largo e, por momentos, olho o Conservatório de Música. 

Lembro o André, que ali desenhou as primeiras claves de sol e estudou os primeiros compassos e tenho um frémito de emoção. 

Depois, caminhando rumo ao largo da Câmara Municipal, deparo-me com a estátua de bronze de aspeto austero de Amato Lusitano, que resiste ao clamor do Tempo estival. 

Evoco o cidadão ilustre, nascido em Castelo Branco em 1 511, que se formou em Medicina em Salamanca e fez de Ferrara, na velha Itália, o berço da sua sabedoria. Formado em Anatomia, Amato falava dez línguas. Um homem sábio, orgulho de uma terra e de uma região.

Devagar, regresso ao carro. E, naquela rua estreita, sede do mais conhecido jornal da cidade, vejo um homem alto que vem ao meu encontro. Veste uma camisa colorida e bizarra e uns calções escuros. Nos pés, umas botas grossas de caminhante. E, na mão, um bordão. Os seus cabelos negros e longos, encaracolados, derramam-se em catarata pelo seu rosto longo e magro. Visto assim, naquele repente, parecia o semblante de Cristo. Passou por mim e sorriu. Saudou-me com um “hello” e um sotaque que se percebia que vinha de outras paragens, muito para lá da fronteira.   

Respondi-lhe, surpreso da sua iniciativa gentil. Depois, olhei para trás e vi-o seguir o seu caminho. E eu, retomei o meu, meditando que não era estranha da parte dele, aquela cortesia. Afinal, refletindo no meu berço coimbrão, percebi com um sorriso aberto nos lábios, que eramos dois estranhos na cidade.
Quito Pereira         

12 comentários:

  1. "Hello"!
    Recordei a cidade que te adoptou há uns bons pares de anos e onde não voltei também há um bom pares de anos...
    Estranha também seria. "Hello"!

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  2. O melhor que tens a fazer é fugir rapidamente para Salgueiro do Campo e não te esqueças de deixar o carro à sombra!

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  3. Vamos passeando contigo pela cidade e que bem nos descreves o passeio. E o encontro de dois estranhos na cidade leva-me a dizer daqui um "hello" muito amigo

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  4. Lagos não entra neste conto, grande Rafael. Castelo Branco e o seu estimado Amato sim ...
    Abraço a todos ...

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    1. Por ter interpretado mal o texto que o Quito escreveu, achei por bem elimina-lo!
      Quito desculpa...mas não foi à falta de o ler.

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    2. Tás desculpado, pá ! de castigo, deves-me uma bica no Vasco da Gama ...

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  5. Prontus Quito: agora já sei que é Amato Lusitano. É o DR. João Rodrigues, nascido em CASTELO BRANCO e foi médico/cientista!
    Nunca mais me vou esquecer!

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  6. A escrita do Quito fez-me pensar que estamos em Castelo Branco pois estava a ver o que se passava.
    Por outro lado fez-me ir ver quem foi Amato Lusitano, pois não conhecia. Mais admirado fiquei quando logo no princípio a wiki portuguesa diz que foi um cristão novo pois o seu nome não corresponde em nada aos nomes que os judeus adoptaram no nosso país nessa altura. Só a continuação da leitura me apercebi da insegurança que sentiam no mundo e sendo ele uma pessoa muito culta e com muitos conhecimentos sociais, compreendi a situação.
    Por outro lado fiquei triste ao saber que uma parte de Castelo Branco está despovoada. Acontecem problemas nos diferentes locais deste planeta que nos fazem debruçar sobre eles. O caso de Castelo Branco ligo-o às dificuldades actuais que se fazem sentir no nosso país e outros, o que todos conhecemos. Aqui, no campo económico, além das dificuldades criadas pelas situações nacionais e internacionais, fui-me habituando a uma bem diferente dos casos que estamos acostumados. O Quebec abria minas em locais estratégicos e por estarem isoladas, as companhias construíam casas para os empregados que iam ficando e outros que iam construindo ou comprando a casita perto do trabalho. Seguidamente com o número de indústrias que apoiavam essa mina, mais pessoal e mais casas. Isso originava que com o tempo lá abria uma loja a que davam o nome de Armazém Central e depois outras de todos os tipos, levando a população a aumentar rápidamente. A partir daí começava o devolvimento da povoação, tendo muitas chegado a cidades. Lá vinham os correios, os serviços de saúde, etectrificação e telefones. Depois a cãmara. Por sua vez os telefones eram diferentes dos nossos pois com a neve, o frio de inverno assim como a grande distância aos locais mais próximos, criavam uma só linha até à povoação que percorria todas as casas, não havendo cabine de telefone para as pessoas não saírem de casa de inverno. Não precisavam de saír à rua, mas quando alguém chamava, lá estavam todos a levantar o telefone ao mesmo tempo para no grande número de vezes voltarem a poisá-lo, pois era para um dos vizinho. Isto acabou há relativamente pouco tempo. Por outro lado, com o tempo, os produtos extraídos foram caindo em desuso pelos mais variados motivos e certas minas fecharam. As pessoas começaram a abandonar as cidades criadas por elas à procura de emprego, as casas ficaram sem algum valor, os serviços começaram a desaparecer, as cãmaras fecharam, os velhotes tentaram resistir mas tudo teve o seu fim. É o abandono total dessas povoações e já desapareceram duas ou três desde que aqui estou. Niguém compra as casas que lá estão e não há quem as habite. As pessoas que tinham um bom nível de vida têm que a refazer, só que para muitos a idade já não ajuda. Na lógica é natural que tenha acontecido, pois todos se encostaram à mina, à parreira mas que não se tenha previsto esta situação e não se tenha evitado que viesse a existir ou tentá-la alterar, é triste e imcompreensível.
    Enfim, não vou tirar os problemas que vivemos em Portugal mas também dá para pensar.

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  7. Óptimo Chico.Gostei do que escreveste.É a realidade nua e crua!A desertifiação não é só em Portugal.
    Mas o Quito desta vez "tramou-me " com o Amato Lusitano e dei "barraca"!!
    Só acertei mesmo no último parágrafo: as sextas feiras no regresso a Coimbra!!!
    Nem vou lembrar!

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  8. O Quito sente uma estranheza, entranhada e dolorosa, por se estar longa das suas raízes.
    Mas não está só!

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