sexta-feira, 23 de junho de 2017

A IRLANDESA ...




Doce Irlanda ...

Naquela semana de fevereiro, o tempo agreste tinha feito uma trégua. Dias mornos e pachorrentos, espraiavam - se preguiçosos pelos areais das praias de Lagos. São os melhores dias. Sem ondas de multidão, é no restaurante do Pedro que convivo com o mar. É assim há muitos anos, naquele recanto acolhedor de Porto de Mós. 

Enquanto o sol vai subindo no imenso céu, veraneantes vão passeando os seus animais de estimação pela extensa praia. Os cães, exultantes de felicidade, correm para o mar, molhando as patas e o pêlo, para depois se sacudirem numa chuva deliciosa de salpicos da água salgada do Atlântico.

Pedro, proprietário do restaurante “O António”, quando nos vê, a mim e à minha companheira, vem logo ter connosco. Não se trata de uma formalidade ou de cativar o cliente.  É sempre o abraço caloroso da alegria da nossa chegada. Dias depois, sempre o abraço sentido da nossa partida. Apenas os muitos anos de frequência da praia e do restaurante, são a chave de uma amizade sincera.

Os almoços na esplanada do Pedro em dias de Inverno risonho e soalheiro, são uma espécie de lavar da alma. Sem atropelos, os dias correm ao sabor das marés .

Naquele dia pacato, olhando a praia e o mar em tons de azul, almoçando o peixe do nosso agrado, sentou - se numa mesa junto de nós, uma irlandesa de idade avançada. Sozinha, ia olhando o Atlântico pensativa, como quem tentava colocar nos pratos de uma balança, o deve e haver de uma já longa vida.

De repente, perguntou se sabíamos falar inglês. O sobressalto da pergunta não podia deixar de ter resposta e, com uma dificuldade que foi esmorecendo à medida que o tempo ia passando, a conversa, com este ou aquele hiato, foi fluída. Nada ficou que não fosse esclarecido. Em jeito de romance, foi -  nos contando a sua vida. Percebi nos seus olhos algum desencanto, como me apercebi, perplexo, que ela precisava de falar e de alguém que a ouvisse.

Como quem desfolhava as páginas de um livro, foi falando do seu casamento falhado, depois de muitos  anos de entendimento com o marido. De como tentou segurar o seu matrimónio até aos limites, tendo desfeito a união por sua iniciativa. Lá, nas paisagens atapetadas da sua verde Irlanda, vive agora só.

Adora a sua pátria e o seu hino nacional. Falou do “Brexit” e da pouca consideração que tem pelos ingleses. Lembrou os filhos e os netos a viver em terras do Canadá. Todos os anos voa para o continente americano, para matar saudades do seu sangue. E faz menção de nos mostrar fotografias do seu clã que está lá longe. 

Depois, não regressa aos campos viçosos do seu país. Vem refugiar - se em Lagos, procurando no regaço do Infante - marinheiro e na hospitalidade dos portugueses, a força com que tenta derrubar a solidão.

No fim do almoço, era já meia - tarde, aceitou a nossa companhia até junto da estátua da autoria de Cutileiro e do tal rei que era um menino, local onde fez questão de ficar. Agradeceu o transporte e partiu em passo lento, aparentemente deambulando sem destino.

A Irlandesa, que nos disse o seu nome mas que não é relevante para este conto da vida real, percebe - se que é uma mulher idosa e só. Pelo Canadá, por Portugal e pela sua amada Irlanda, se cruzam os seus caminhos da vida. São esses os seus pontos cardeais, que mais não são que os seus pontos de afeto.

Talvez um dia nos voltemos a encontrar no restaurante do Pedro e ela nos ensine a entoar o hino da sua bela pátria, uma vez que nos quis confidenciar, enquanto olhava o mar sereno, o hino da sua atribulada vida.
Quito Pereira       

24 comentários:

  1. Diz-me da tua vida, que te faço um conto. Assim é o Quito.
    E nem precisamos mesmo saber o nome da senhora irlandesa, para fazermos um "retrato" em nossa imaginação, de tão bem descritos os traços de uma vida, agora, quase na solidão.
    Que bom que tu, Quito, e tua (sempre) companheira, a ouviram. Às vezes (e não poucas vezes) milhares de pessoas apenas querem isso: serem ouvidas; que suas histórias de vida sejam compartilhadas. São dores e alegrias muitas das vezes desperdiçadas nas lembranças, com quem já quase não se tem para quem contá-las.
    Vocês, se não perceberam, foram a "orquestra" silenciosa, para que ela "cantasse" sua vida, mas - agora - ao ritmo que ela mesma determinava para si.
    Traga-nos mais histórias assim. É uma maneira extraordinária de conhecermos pessoas tão distantes... com situações tão similares àquelas ao nosso entorno, e que raramente percebemos.

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    1. ...e o Quito tem tantas para nos contar!
      Mas com jeito isso vai acontecendo!
      Agora que vai gozando uma boa vida porque soube aproveitar durante estes quase 10 anos de blogue as ajudas de cus(t)po bem chorudas...Né Quito?

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  2. O Quito tem este dom de nos contar, de maneira simples, histórias de vidas bem complicadas.
    Dei por mim a pensar: como é possível uma pessoa viver na solidão, com mais de 6 mil milhões de seres humanos à sua volta!!!...

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    1. A Solidão não é estar-se cercado por pessoas. Da mesma forma, existem pessoas que vivem sozinhos, mas não vivem na solidão.

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    2. Alguém terá tido este pensamento...
      Eu pensava que podia contar sempre com alguém, até que um belo dia descobri que viemos a esse mundo para aprendermos a viver sozinhos.”

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  3. Das historias vindas do lado de Lagos consegues sempre surpreender!
    E tinhas tu este texto guardado na gaveta!
    O que mais poderei eu dizer...quando a Chama a Mamãe nos deliciou com o seu comentário!
    Que belo complemento.
    Obrigado Quito
    Obrigado Chama a Mamãe

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  4. E este conto da vida real foi muito bem comentado pela Chama a Mamãe. Foi tão real que quase estive convosco , na esplanada do António, e ouvi a história da senhora. Qualquer dia vou a Lagos ver se a vejo e almoçamos todos juntos. Até lá um abraço

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  5. Uma idade de oiro irlandesa, um ouvido atento, uma pena e um Quito para fazer chegar até nós os momentos que viveu da forma que ele tão bem nos transmitir. Só que esta solidão que se passeia pelo mundo é da Irlanda do Norte que além de todos os problemas familiares que a acompanham a todo o instante de que falou, traz com ela a mágoa bem expressa de terem sido leais à corôa que agora os não valoriza mais do que os outros e ignorados pelos seus conterrâneos da Irlanda do Sul por motivos históricos.
    Enfim, tendo sido acompanhada pelo Quito e São, foi na sua solidão que se afastou dos que pacientemente a ouviram pois no momento já não precisava de mais nada... senão da sua solidão.
    Excelente texto que nos obriga a reflectir sobre a vida do dia a dia que nos passa ao lado mas que a ti não te passou, Quito.
    Abraço.

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  6. Chico, só uma correcção, para nós de pouca importância mas muito importante para a verdade geográfica e muitíssimo importante para os Irlandeses:
    Não existe Irlanda Sul. Ao que chamas Irlanda do Sul, deves chamar República Irlandesa. Geograficamente está incorrecto chamar-lhe do Sul, até porque o seu terreno, vai mais a Norte do que a chamada Irlanda do Norte, esta sim, é um pedaço de terra só no Norte e é mesmo chamada Irlanda do Norte.
    No resto, concordo em absoluto contigo, pois a lealdade à coroa inglesa só tem trazido problemas aos Irlandeses da Irlanda do Norte.
    Conheço bem toda as duas e o seu povo, com quem tive algum contacto e conversas bem interessantes. A cidade de SLIGO, ficará sempre nas nossas boas recordações, pela conversa que tivemos com uma senhora e sua filha. Um dia aqui contarei o que se passou.

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    1. Estou de acordo contigo, Alfredo Moreirinhas. Ia para continuar a explicar mas o cansaço apoderou-se de mim e então terminei essa frase "por motivos históricos". Nunca pensei no momento que desse um problema tão grave como esse. As minhas desculpas a todos em geral e a cada um em especial pela visão enganosa da situação que possa ter criado.
      Nunca fui à Irlanda mas vivemos no meio deles e nas minhas conversas ao longo dos anos, cheguei à conclusão que um dos problemas da do Norte foi o avanço da técnica. Antigamente a corôa precisava deles pois puxavam com o seu exemplo muita gente para a causa e dava-lhes os maiores e melhores centros para exporem as suas ideias. Hoje com as redes sociais cada um faz o que quer, o que vem a reflectir-se no voto e assim eles não não têm mais peso do que qualquer outro cidadão individualmente. É claro que vão sempre pensando os assuntos individualmente e a Inglaterra está-lhes sempre na frente em tudo. Enfim... os tempos mudaram.
      São uns milhares muito largos que vieram para aqui no tempo da grande fome que passaram na sua terra natal. Chegavam em péssimo estado, eram desembarcados numa ilha próximo da costa canadiana e aí ficavam uns dias de quarentena. Os que no fim estavam vivos, entravam. Foram uns milhares muito largos que reproduzidos hoje têm uma força social/económica no Quebe e restante Canada de grande realce.
      Todos os anos há aqui um desfile no dia do seu protecor São-Patrício (S. Patrick) ao qual estão presentes as altas entidade do sítio e nacionais como muitas vezes o primeiro ministro do Canada. As pessoas usam um pequeno toque de verde porque nesse dia todos somos irlandeses e a cerveja que se bebe "só" nesse dia, é de cor verde.
      São pessoas simples e muito cooperantes. Conheço alguns com quem conversava, só que agora estou parado em casa.
      Desculpa lá o mal que causei.
      Toma lá um abraço.

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    2. Eita, Chico, não causaste mal algum. Por mim, até gosto desse tipo de postura:um argumenta; outro, complementa. Assim, todos ficam (ainda) mais informados e esclarecidos, como é o meu caso.
      Abraço em ambos, com todo o respeito, claro!

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    3. Penso que o Alfredo Moreirinhas foi muito oportuno, Chama Mamãe! Inadevertidamente criei uma confusão que ele ajudou a resolver.
      Obrigado pela presença.
      Um abraço cá do trio.

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    4. Não causaste mal absolutamente nenhum e muito menos confusão, Chico! Tal como disse, até é uma coisa de pouca importância para nós.
      Eu gostei muito das duas Irlandas e do seu povo, mas achei os da Republica da Irlanda mais simpáticos, mas pode ter sido coincidência.
      Gostei do papo, como diria a Chama a Mamãe.

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    5. Andei no meu turismo habitual e quando cheguei já nem vim ao blogue.
      Contigo não Alfredo Moreirinha pois estavas dentro da situação mas os leitores levei-os atrás de mim. Quando não estou de acordo, mostro-o mas quando estou de acordo digo logo. Sou assim e aqui no blogue pois estou do outro lado do Oceâno, cai de forma diferente da que se estivéssemos a falar sentados à mesa do café. Foste foi muito oportuno porque não deste muito tempo para que as dúvidas continuassem.
      Também gostei do papo e ainda há pouco estive a falar com o Brasil. Gosto muito de falar com eles pois são muito divertidos. Estão sempre bem dispostos.

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  7. ... E, da Irlanda, só conheço e adoro ouvir a Banda U2! rss

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    1. Bem, agora a Chama a Mamãe! está-me a tocar nos calcanhares. Se bem que vá ouvindo quando calha música dos U2 estou mais virado para outro tipo de música mas as irlandas têm um folcloro baseado num tipo de dança sapateada que para mim é uma loucura. Na forma como dançam nós não nos apercebemos mas os tempos do sapateado são os mesmos do nosso sapateado só que não parece. Ver os dois tipos de sapateados diferentes feitos ao mesmo tempo por dois casais, é uma lição. No caso do Riverdanse que fizeram tournês mundiais, tinha que ir um especialista ver o tipo do soalho do palco pois não podia ser duro nem ter muita inclinação porque dava-lhes cabo dos pés. Houve feridos/as.
      Para ver o Riverdanse 2009,
      clicar aqui. Convido a ver tudo pois a segunda parte é em grupo.
      Por estes lados em qualquer festa é o que eles dançam por todo o lado que tenha piso de madeira. Fico lá a vê-los até ao fim. Uma pessoa não se cansa de os/as ver e aplaudir.
      Para ver Planet Ireland,
      clicar aqui.
      Para os que gostaram agora é só ir ao Youtube e boa sorte.

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    2. Tournês – Palavra de origem francesa e ocasionalmente adaptada por mim para português... Leia-se: turnês.

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  8. Concordo com Chama a Mamãe não tens que pedir desculpa. O teu involuntário lapso deu aso a um melhor conhecimento sobre a Irlanda,
    Eu e a Celeste Maria já fomos muito "felizes na Irlanda"! Estivemos lá uma semana há já alguns anos e deixámos lá amizades principalmente o casal em casa dos quais ficámos hospedados. Estivemos lá na modalidade de "geminação" e com o Grupo de Danças e Cantares dos CTT.
    Casal muito simpático com os quais mais tarde retribuimos recebendo-os em nossa casa e trocamos Boas Festas pelo Natal.
    Como exemplo recebi hoje este email deles:
    Dear friends in Cuimbra, we are so sorry to hear of the terrible tragedy of the forest fires in your country.We sincerely hope that all your family members are safe & well and were not affected in any way & wish you health & happiness in the future.
    Best Regards from your friends in Dublin
    Hugh & Marie.

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    1. Pedi desculpa porque com uma destas devo ter enganado muitos leitores.Valeu o comentário oportuno do Alfredo Moreirinhas para me ajudar a desfazer o que inadevertidamente criei. O pedir desculpa é uma forma de alterar o que escrevi e repôr a realidade mas não estou tocado. Penso que o Moreirinhas apareceu na hora certa.
      Gostei de saber que estiveram na Irlanda pois essas voltinhas fazem sempre bem e com um grupo de Danças e Cantares dos CTT mostra bem toda essa vossa energia e espírito de iniciativa.
      Quanto aos vossos simpáticos hospedeiros, são pessoas que com com o uso do "&" à repetição estavam muito habituados a escrever e ainda mais: se interessam pelos outros como mostram bem. É como eu digo: em todo o mundo há belíssima Gente.
      Abraço.

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  9. Visitámos a Irlanda como convidados por um grupo de Geminação dos CTT.
    Uns anfitriões 5*!
    Permitiu conhecermos as suas vivências, lindas paisagens, espetáculos...
    Procuramos retribuir​, como é apanágio dos portugueses,é foram encantados, sobretudo com o clima!
    Deixaram saudade.

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    1. Quando aqui cheguei ainda saí algumas vezes mas depois comecei a ser um para-raios e passei a ficar "sedentário", Celeste Maria. Lá vou conseguindo convencer a minha família a irem dar uma volta uma vez por outra, muito especialmente quando as vejo cansadas.
      O clima deles é típico das ilhas da zona, ao passo que o do nosso país é bem mais aberto. Aqui também é muito aberto pois há tantos dias de sol como em Paris, só que no inverno quando há sol o friiiiio é de rachar. Quando há nuvens e o sol não consegue furar, o calor produzido pela terra fica entre ela e as núvens pelo que não há vento e a temperatura é mais amena.
      Quanto a isto aqui isto é um país que figurativemente quase não precisameos de saír para conhecer os hábitos, usos e costumos de certos outro países através das suas diásposras. Não vamos conhecer todas nem perto mas especialmente as principais em população com que mantivemos contactos num momento ou outro da nossa vida, vamos conhecendo porque uma conversa ou outra e lá vamos sabendo os hábitos, usos e costumes. As pessoas gostam de trocar estas informações e é por isso que dou muitos dados daqui. No caso irlandês é impossível passar ao lado pois quatro milhões e meio a envolverem-nos nos momentos de alegria até fazem muito barulho, é impossível não conhecer uns tantos. Na República Irlandesa segundo os dados mais recentes que obtive são 4 757 976 hab.
      O que me deixou mais admirado ao princípio foi os conhecimentos que não esperava vir a ter dentro da nossa própia diáspora ao lidar com pessoal que tomou parte no assalto ao Santa Maria. Como já foi há muito hoje não me lembro deles mas enriquecerem-me bastante com certos dados.
      Os irlandeses tratam habitualmente muito bem as pessoas com quem lidam mas os portugueses não lhes ficam atrás. É a nossa forma de ser.

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