sábado, 22 de junho de 2019

A PÁGINA FINAL ...







Até sempre ...

Não tenho o dom da indiferença – não tenho. Gostava de olhar as tragédias dos outros de uma forma protocolar, quando de uma maneira mais conservadora atamos uma gravata preta no colarinho da camisa e nos barricamos no chavão das condolências que é preciso dar.

Anteontem o telefone tocou. De lá, o Zé Silvar disse-me a soluçar - "acabou" ! E eu, de cá, não fiquei muito surpreendido. Mas era aquele o telefonema que eu não queria receber. Quis balbuciar umas palavras ao telefone mas para dizer o quê ? Palavras de circunstância? Que dizer a um amigo que ficou sozinho no declinar da vida? Que palavras mágicas poderia eu arranjar naquele momento, que lhe levantassem o ego ? Sem saída airosa limitei-me a dizer-lhe que lamentava. Mas que palavra mais pateta neste luto para cimentar ainda mais uma amizade de quase cinco décadas, forjada nas trincheiras da guerra ! Desligado o telefone, fiquei em silêncio. A vontade era de partir para o norte à desfilada e dizer ao meu amigo que eu e minha mulher estávamos ali a partilhar daquele drama. Eu amava a Manuela Silva. Todos amávamos a Manuela Silva. Todos os que, em Trás – os - Montes, nos refugiávamos no solar de um de nós e durante dias convivíamos em sã amizade. A Manuela dedicou a sua vida aos outros. Ao marido, aos filhos, aos netos e ao seu colégio infantil de que era proprietária. Quando chegava ao nosso ponto de encontro transmontano, ela já trazia na mala do carro tudo o que precisava para confecionar as refeições. Ia para a ampla cozinha e com energia cozinhava para todos por amor. E, quando se cozinha com amor, a comida sabe melhor.

A doença terrível capturou-a. Foi mártir mais de um ano. E ele – o meu querido Zé Silva – um herói. Acompanhou o sofrimento dela com o sofrimento dele. A Manuela era e é o grande amor da sua vida. Nós, os tais militares que já não temos patente porque agora somos todos soldados da paz, da concórdia e da amizade dispersos pelo país, rumámos a norte para estar com este amigo. Do nosso  pequeno grupo fui – fomos – o primeiro a chegar dos que vinham do Ribatejo ou do Algarve. Foi um abraço longo e em silêncio. Um abraço ao amigo honesto, frontal e leal que sempre foi. Dei-lhe um beijo na face. Um beijo fraterno, que mais não era que o meu reconhecimento pela amizade num momento tão doloroso em que acabava de perder a companheira. Não levei no bolso o texto de homenagem que pretendia fazer à nossa querida amiga. Em casa, antes de partir, ainda tentei. Mas as palavras escritas saíam – me embrulhadas. Tinha a cabeça vazia. No Campo Santo, à torreira do sol, nos despedimos de quem nos deixou cedo de mais. E ali, no Cemitério de Valadares, os aviões comerciais voavam baixo a fazerem-se à pista do aeroporto. Parecia que os seus motores estavam mudos, a associarem-se à cerimónia, num planar elegante. A Manuela adorava o Brasil que visitou por várias vezes. Talvez os aviões, que por ali passaram naquele momento triste, a levem nas asas do vento a caminho do Olimpo. Porque é lá, pela sua filosofia de vida de doação aos outros, que ela merece estar. Por nós e muito por ti, reafirmámos a continuação da nossa amizade. Lá, junto ao Monte Farinha e ao redor da lareira, a tua cadeira cabe sempre na mesa. Não estás mas estás. Para sempre.  
Adeus, querida amiga.
Quito Pereira             

9 comentários:

  1. Este texto não estava na programação do Fernando Rafael, nem infelizmente no meu. Estou certo que ele me perdoará o atrevimento.

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  2. Sempre porta aberta.
    O assunto não é de programação!

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  3. Agora depois de ler este teu texto recordo a manhã que apareceste na Pastelaria Vasco da Gama,nervoso vestido a rigor dizendo que estavas de abalada para o norte pois tinhas recebido a notícia de um amigo que lhe tinha falecido a esposa.
    Com o nervosismo que expressava bem o abalo que tal notícia se apoderou de ti,só agora lendo o texto, me apercebi que era o casal que todos os anos vos levava até ao norte para juntamente com outros amigos do tempo da Guiné, conviverem e manterem uma amizade sólida que o tempo ia reforçando.
    É provável que esses encontros não tenham a mesma alegria...

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    1. É verdade, Rafael. Nada será como antes. Mas reafirmámos a vontade de nos mantermos unidos até por homenagem a ela. Obrigado pelas tuas palavras.

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  4. Há momentos em que nos falham as palavras no turbilhão de sentimentos que sé enovelam acastelados no pensamento.
    Foi o que agora me aconteceu ao ler tudo quanto escreveste
    Um abraço Quito

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  5. Sei que lês os textos. Como tenho a certeza que esta realidade te trouxe outras realidades que te provocam sofrimento. E só por isso tenho que te pedir desculpa. Porque há chagas que não curam. São feridas abertas para sempre.
    Um abraço, meu amigo Rui Felício

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  6. Impossível ficar indiferente à lei da natureza que é tão certa como dolorosa. Sentidos pêsames, amigo Quito.

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  7. Que posso eu dizer, de cá, senão a mesma palavra que tu usaste, Quito, a de lamento. Como disse a Celeste, a "lei da natureza" é certa, mas, incrivelmente, nunca estamos preparados para cumpri-la, sejam em qual idade for. E, quando vejo um dos parceiros de longa cumplicidade indo embora, e o outro a ficar amargando a (doce) saudade, vejo que a vida tem lá muitos mistérios.
    Mas sabem o que isso resta de bom? Que só irão lembrar coisas boas dessa significante pessoa que permeou a vida de vocês de modo tão pleno, especialmente a do Sr.Zé Silva.

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