Até sempre ...
Não tenho o dom da indiferença –
não tenho. Gostava de olhar as tragédias dos outros de uma forma protocolar,
quando de uma maneira mais conservadora atamos uma gravata preta no colarinho
da camisa e nos barricamos no chavão das condolências que é preciso dar.
Anteontem o telefone tocou. De
lá, o Zé Silvar disse-me a soluçar - "acabou" ! E eu, de cá, não fiquei
muito surpreendido. Mas era aquele o telefonema que eu não queria receber. Quis
balbuciar umas palavras ao telefone mas para dizer o quê ? Palavras de
circunstância? Que dizer a um amigo que ficou sozinho no declinar da vida? Que
palavras mágicas poderia eu arranjar naquele momento, que lhe levantassem o ego
? Sem saída airosa limitei-me a dizer-lhe que lamentava. Mas que palavra mais
pateta neste luto para cimentar ainda mais uma amizade de quase cinco décadas,
forjada nas trincheiras da guerra ! Desligado o telefone, fiquei em silêncio. A
vontade era de partir para o norte à desfilada e dizer ao meu amigo que eu e minha mulher estávamos ali a partilhar daquele drama. Eu amava a Manuela Silva.
Todos amávamos a Manuela Silva. Todos os que, em Trás – os - Montes, nos
refugiávamos no solar de um de nós e durante dias convivíamos em sã amizade. A
Manuela dedicou a sua vida aos outros. Ao marido, aos filhos, aos netos e ao
seu colégio infantil de que era proprietária. Quando chegava ao nosso ponto de
encontro transmontano, ela já trazia na mala do carro tudo o que precisava para confecionar
as refeições. Ia para a ampla cozinha e com energia cozinhava para todos por amor. E, quando se cozinha com amor, a comida sabe melhor.
A doença terrível capturou-a. Foi
mártir mais de um ano. E ele – o meu querido Zé Silva – um herói. Acompanhou o
sofrimento dela com o sofrimento dele. A Manuela era e é o grande amor da sua
vida. Nós, os tais militares que já não temos patente porque agora somos todos
soldados da paz, da concórdia e da amizade dispersos pelo país, rumámos a norte
para estar com este amigo. Do nosso pequeno grupo fui – fomos – o primeiro a chegar dos
que vinham do Ribatejo ou do Algarve. Foi um abraço longo e em silêncio. Um
abraço ao amigo honesto, frontal e leal que sempre foi. Dei-lhe um beijo na
face. Um beijo fraterno, que mais não era que o meu reconhecimento pela amizade
num momento tão doloroso em que acabava de perder a companheira. Não levei no
bolso o texto de homenagem que pretendia fazer à nossa querida amiga. Em casa,
antes de partir, ainda tentei. Mas as palavras escritas saíam – me embrulhadas.
Tinha a cabeça vazia. No Campo Santo, à torreira do sol, nos despedimos de quem
nos deixou cedo de mais. E ali, no Cemitério de Valadares, os aviões comerciais
voavam baixo a fazerem-se à pista do aeroporto. Parecia que os seus motores estavam mudos, a associarem-se à cerimónia, num planar elegante. A Manuela
adorava o Brasil que visitou por várias vezes. Talvez os aviões, que por ali
passaram naquele momento triste, a levem nas asas do vento a caminho do Olimpo.
Porque é lá, pela sua filosofia de vida de doação aos outros, que ela merece
estar. Por nós e muito por ti, reafirmámos a continuação da nossa amizade. Lá,
junto ao Monte Farinha e ao redor da lareira, a tua cadeira cabe sempre na
mesa. Não estás mas estás. Para sempre.
Adeus, querida amiga.
Quito Pereira
Este texto não estava na programação do Fernando Rafael, nem infelizmente no meu. Estou certo que ele me perdoará o atrevimento.
ResponderEliminarSempre porta aberta.
ResponderEliminarO assunto não é de programação!
Agora depois de ler este teu texto recordo a manhã que apareceste na Pastelaria Vasco da Gama,nervoso vestido a rigor dizendo que estavas de abalada para o norte pois tinhas recebido a notícia de um amigo que lhe tinha falecido a esposa.
ResponderEliminarCom o nervosismo que expressava bem o abalo que tal notícia se apoderou de ti,só agora lendo o texto, me apercebi que era o casal que todos os anos vos levava até ao norte para juntamente com outros amigos do tempo da Guiné, conviverem e manterem uma amizade sólida que o tempo ia reforçando.
É provável que esses encontros não tenham a mesma alegria...
É verdade, Rafael. Nada será como antes. Mas reafirmámos a vontade de nos mantermos unidos até por homenagem a ela. Obrigado pelas tuas palavras.
EliminarHá momentos em que nos falham as palavras no turbilhão de sentimentos que sé enovelam acastelados no pensamento.
ResponderEliminarFoi o que agora me aconteceu ao ler tudo quanto escreveste
Um abraço Quito
Sei que lês os textos. Como tenho a certeza que esta realidade te trouxe outras realidades que te provocam sofrimento. E só por isso tenho que te pedir desculpa. Porque há chagas que não curam. São feridas abertas para sempre.
ResponderEliminarUm abraço, meu amigo Rui Felício
Impossível ficar indiferente à lei da natureza que é tão certa como dolorosa. Sentidos pêsames, amigo Quito.
ResponderEliminarObrigado. amiga Celeste Maria ...
EliminarQue posso eu dizer, de cá, senão a mesma palavra que tu usaste, Quito, a de lamento. Como disse a Celeste, a "lei da natureza" é certa, mas, incrivelmente, nunca estamos preparados para cumpri-la, sejam em qual idade for. E, quando vejo um dos parceiros de longa cumplicidade indo embora, e o outro a ficar amargando a (doce) saudade, vejo que a vida tem lá muitos mistérios.
ResponderEliminarMas sabem o que isso resta de bom? Que só irão lembrar coisas boas dessa significante pessoa que permeou a vida de vocês de modo tão pleno, especialmente a do Sr.Zé Silva.