sexta-feira, 28 de junho de 2019

NOITE AMARELA ...






Amarela é a noite. Uma noite com rosto, salpicada de estrelas. Estrelas dispersas no palco imenso. Silenciosas, parecem vigiar a planície campesina. Também a lua, majestosa no seu lento navegar, ilumina os caminhos e as estradas desertas, como se a Vida se escoasse para lá das montanhas. Um luar desmaiado de cor amarela, que inunda tudo envolto em silêncio. Um silêncio absoluto, quase intimidante. De longe olho a curva da estrada. Que mistérios me reserva o que a vista não alcança? Nada. Do lado de lá da curva, de novo e apenas o silêncio. Diluiu-se a vida na luz de um candeeiro mortiço, como uma vela pálida de finados a anunciar o ancoradouro da Vida. Percorro de carro a noite amarela. Vagueio o meu pensamento pela cidade distante – Coimbra. Lembro a Torre da Sabedoria. O Pinhal de Marrocos do meu passado. Uma Rua com nome de Navegador que foi a minha. Um Bairro que é o meu. Num sobressalto vislumbro uma silhueta. Parido debaixo das saias da noite, vejo emergir um homem. Um ser alto e magro. Anda devagar, olhos no chão, meditabundo, como se caminhar fosse uma penitência. Cruzo-me com ele e, num esforço, adivinho-lhe os traços da face magra e rosto sombrio - é o Cardosa. Seguimos destinos opostos. Rápido deixei de o ver tragado pelas sombras angustiantes da noite amarela. Por minutos, em marcha lenta, relembrei a sua cara cansada e sem alma. Um dia dei-lhe boleia numa curva apertada destes caminhos de Cristo. Vinha sujo, o semblante marcado pelo esforço da jornada. Um rosto sem emoções. Mas, naquele dia, para minha perplexidade, o Cardosa sorriu. O Senhor Doutor Juiz, homem generoso, deu – lhe trabalho numas propriedades suas lá para os lados da Esteveira. Afinal a oportunidade de ganhar algum dinheiro e afagar os apelos de um estômago vazio. De novo recordo aquela noite -  a noite amarela. Para alguns, aquele será apenas e só um vagabundo. Para outros, o ferrete acre de um excluído, um indigente. Para mim, que um dia lhe pressenti na alma e no olhar triunfante a satisfação de uma ocupação que lhe permitia ir vivendo com alguma dignidade, aquele homem jamais será um indigente ou um vagabundo. Prefiro chamar-lhe um caminheiro da noite.
Q. P.    
             

11 comentários:

  1. Em alguns lugares já não se tem esse privilégio de observar esses detalhes. A vida parece passar pelas pessoas numa velocidade tamanha
    Moradores de rua, tão comuns (e aumentando) pelas ruas do Brasil, parecem-nos todos “invisíveis”, como se suas presenças não fizessem nenhuma diferença.
    Mas eles trazem histórias fantásticas! E um grande número só precisa de um ponto de apoio em suas vidas, um encontro transformador, como bem retrata a história do Sr. Cardoso e o tal juiz. O sorriso, que agora o Quito presenciou, foi, certamente, a partir dessa oportunidade de transformação, da retomada do sentido de sua vida.

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    1. Obrigado, amiga. Naquelas zonas interiores, ainda se vão arranjando alguns trabalhos temporários em quintais e quintas. O Cardosa ( e não Cardoso) é um daqueles para quem cada nascer do dia é um ponto de interrogação. Tentar sobreviver é a palavra - chave.
      Um abraço

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  2. Os teus escritos continuam a enternecer-me. Levam sempre à reflexão

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  3. Obrigado, Ló. Envio-te um abraço ---

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  4. São as agruras da vida que fazem os caminhantes passarem a ser vagabundos. Mas não é o caso do Cardosa, esse não se verga. Bonito texto.

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  5. Sempre a solidão dum interior vazio percorrido em noites não de escuridão, mas em cor macilenta, e um amigo que aparece no caminho depois de uma jorna que lhe mata a fome e uma conversa de circustaância até que o caminho se torna novamente solitário.
    Neste rodar solitário as recordações afluem, percorrem Km e passam pelo Pinhal de Marrocos e como é natural na rua que está sempre presente...

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  6. Como bem disse o Rafael as recordações vencem distâncias.
    Sob o luar amarelo que ilumina a noite beirã o Quito lembra que esse mesmo luar projecta as sombras fantasmagóricas do nosso e seu pinhal de Marrocos e da sua rua.

    E a tristeza da vida do Cardoso dá lugar a uma inusitada alegria apenas porque o homem conseguiu arranjar trabalho numa quinta do Sr.Doutor Juiz.

    O Quito e a sua escrita inconfundível tem o condão de nos fazer pensar...

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    1. Lembranças de um passado que um dia passei a escrito. São as minhas memórias.
      Um abraço

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