Amarela é a noite. Uma noite com rosto, salpicada de estrelas.
Estrelas dispersas no palco imenso. Silenciosas, parecem vigiar a planície
campesina. Também a lua, majestosa no seu lento navegar, ilumina os caminhos e
as estradas desertas, como se a Vida se escoasse para lá das montanhas. Um luar
desmaiado de cor amarela, que inunda tudo envolto em silêncio. Um silêncio absoluto,
quase intimidante. De longe olho a curva da estrada. Que mistérios me reserva o
que a vista não alcança? Nada. Do lado de lá da curva, de novo e apenas o
silêncio. Diluiu-se a vida na luz de um candeeiro mortiço, como uma vela pálida
de finados a anunciar o ancoradouro da Vida. Percorro de carro a noite amarela.
Vagueio o meu pensamento pela cidade distante – Coimbra. Lembro a Torre da
Sabedoria. O Pinhal de Marrocos do meu passado. Uma Rua com nome de Navegador
que foi a minha. Um Bairro que é o meu. Num sobressalto vislumbro uma silhueta.
Parido debaixo das saias da noite, vejo emergir um homem. Um ser alto e magro. Anda
devagar, olhos no chão, meditabundo, como se caminhar fosse uma penitência.
Cruzo-me com ele e, num esforço, adivinho-lhe os traços da face magra e rosto
sombrio - é o Cardosa. Seguimos destinos opostos. Rápido deixei de o ver
tragado pelas sombras angustiantes da noite amarela. Por minutos, em marcha
lenta, relembrei a sua cara cansada e sem alma. Um dia dei-lhe boleia numa
curva apertada destes caminhos de Cristo. Vinha sujo, o semblante marcado pelo
esforço da jornada. Um rosto sem emoções. Mas, naquele dia, para minha
perplexidade, o Cardosa sorriu. O Senhor Doutor Juiz, homem generoso, deu – lhe
trabalho numas propriedades suas lá para os lados da Esteveira. Afinal a
oportunidade de ganhar algum dinheiro e afagar os apelos de um estômago vazio. De
novo recordo aquela noite - a noite
amarela. Para alguns, aquele será apenas e só um vagabundo. Para outros, o
ferrete acre de um excluído, um indigente. Para mim, que um dia lhe pressenti
na alma e no olhar triunfante a satisfação de uma ocupação que lhe permitia ir
vivendo com alguma dignidade, aquele homem jamais será um indigente ou um
vagabundo. Prefiro chamar-lhe um caminheiro da noite.
Q. P.
Em alguns lugares já não se tem esse privilégio de observar esses detalhes. A vida parece passar pelas pessoas numa velocidade tamanha
ResponderEliminarMoradores de rua, tão comuns (e aumentando) pelas ruas do Brasil, parecem-nos todos “invisíveis”, como se suas presenças não fizessem nenhuma diferença.
Mas eles trazem histórias fantásticas! E um grande número só precisa de um ponto de apoio em suas vidas, um encontro transformador, como bem retrata a história do Sr. Cardoso e o tal juiz. O sorriso, que agora o Quito presenciou, foi, certamente, a partir dessa oportunidade de transformação, da retomada do sentido de sua vida.
Obrigado, amiga. Naquelas zonas interiores, ainda se vão arranjando alguns trabalhos temporários em quintais e quintas. O Cardosa ( e não Cardoso) é um daqueles para quem cada nascer do dia é um ponto de interrogação. Tentar sobreviver é a palavra - chave.
EliminarUm abraço
Isso:Cardosa!
EliminarOs teus escritos continuam a enternecer-me. Levam sempre à reflexão
ResponderEliminarObrigado, Ló. Envio-te um abraço ---
ResponderEliminarSão as agruras da vida que fazem os caminhantes passarem a ser vagabundos. Mas não é o caso do Cardosa, esse não se verga. Bonito texto.
ResponderEliminarSempre a solidão dum interior vazio percorrido em noites não de escuridão, mas em cor macilenta, e um amigo que aparece no caminho depois de uma jorna que lhe mata a fome e uma conversa de circustaância até que o caminho se torna novamente solitário.
ResponderEliminarNeste rodar solitário as recordações afluem, percorrem Km e passam pelo Pinhal de Marrocos e como é natural na rua que está sempre presente...
Obrigado, Fernando ...
EliminarComo bem disse o Rafael as recordações vencem distâncias.
ResponderEliminarSob o luar amarelo que ilumina a noite beirã o Quito lembra que esse mesmo luar projecta as sombras fantasmagóricas do nosso e seu pinhal de Marrocos e da sua rua.
E a tristeza da vida do Cardoso dá lugar a uma inusitada alegria apenas porque o homem conseguiu arranjar trabalho numa quinta do Sr.Doutor Juiz.
O Quito e a sua escrita inconfundível tem o condão de nos fazer pensar...
Lembranças de um passado que um dia passei a escrito. São as minhas memórias.
EliminarUm abraço
Errata:
ResponderEliminarCardoso=Cardosa