(em Memória de Manuel Luís)
Ao crepitar da lareira já não se contam histórias. A ausência
tomou conta deste lugar. Apenas o rubro clarão do azinho a arder concede ao
espaço amplo e soturno alguma vida. As cadeiras vazias lembram o passado. Uma memória
de tormentos contados na primeira pessoa. Todas as conversas – todas – iam parar
ao fundo do poço da mina. Falava-se de volfrâmio. Falava-se de escravidão.
Falava-se de perseguições. Falava-se de fome. Falava-se de doença. Um a um, os
lugares foram ficando vazios. Apenas o lume se manteve no seu posto porque é
imortal. Ele, o velho mineiro Manuel Luís, resistiu o que pôde. Comigo e com a
lareira, dialogámos a três. Depois, com idade provecta, partiu. Partiu para a
galeria dos heróis anónimos. Esperei-o na berma da estrada. Quis despedir-me
dele. Um esquife humilde coberto por um pano negro e um singelo ramo de flores
compunham o quadro funesto. E um cortejo de povo cabisbaixo, que olhava
fixamente as pedras cor de cinza da calçada. Ausência - tudo era ausência.
O dono do café refugia - se atrás do balcão. De companhia,
dois desempregados que ali veem escoar-se a esperança e os dias claros. Faces
caídas, olhares perdidos. Por vezes, o estabelecimento é sacudido por uma
revoada de passantes. Bebem algo à pressa ao balcão e partem na aventura de
sobreviver. Muitos trazem na roupa que envergam a marca do caminhar dos dias.
Gente de labor. Lá de dentro, de dentro de uma sala fria e húmida, exala um
aroma penetrante a comida acabada de fazer. Um ou outro caminhante, passageiro
do Tempo, sentado numa mesa de madeira forrada com uma toalha de papel, reconforta
o estômago para o recomeço da jornada. Uma televisão encostada a uma parede
branca fala sozinha. As notícias do dia, ditas em catadupa, parecem não ter
nexo. Ninguém as ouve. Ninguém lhes dá atenção. Findo o repasto, o cliente
retira-se. Remexe no fundo dos bolsos, na procura de uma nota ou das moedas que
permitam pagar a refeição barata. Apenas cinco euros é o preço do reconforto e
da sobrevivência. Depois parte. A sala, mascarada de restaurante, fica vazia. O
amplo salão de novo fica inerte e sem vida. Resta apenas a lareira a crepitar
de memórias. E a ausência.
Q. P.
É um título que nos convida mais uma vez a entendermos o que se vai passando por estas terras, vilas ou aldeias de Portugal do interior. Numas mais do que outras a vida dos habitantes que vão resistindo, vai-se finando, caso não seja por doença fisica, acabará por ser pela solidão, que gera o desespero por uma existência sem esperança...
ResponderEliminarDepois o que vai restando!
Resta o que o Quito nos conta neste texto! O que outrora ainda dava um pouco de vida á taberna/restaurante, um a um vai perdendo quem ainda dava dois dedos de conversa sentados à lareira! Menos um amigo a quem o Quito ouvia as suas histórias, os seus lamentos de uma vida de sacxrifícios.
No dia de Portugal fomos a correr para Portalegre. Uma espécie de cosmética a fazer crer que o interior existe. Mas depois de passarem os soldados, os canhões e os aviões, tudo ficará ma mesma. Um interior esquecido. Basta ler o "Jornal do Fundão" na sua luta, para se perceber este fenómeno secular da desertificação.
ResponderEliminarAgradeço-te o comentário, Fernando.
Assim é a vida, vai correndo o tempo e com ele as inevitáveis mutações dos comportamentos.
ResponderEliminarO que dá vida aos sítios são os diálogos.
ResponderEliminarNem que a conversa seja travada entre duas pessoas e uma lareira.
Sem pressas, com tempo, sem tema prévio.
Quando assim não acontece, quando um desprevenido passante engole a comida olhando o relógio, o sítio já não tem vida.
É apenas um lugar...
A vida, essa deu-lhe o Quito, nas conversas e nos silêncios pejados de recordações dos seus interlocutores, últimos dinossauros de um tempo passado.
Paradoxalmente, vida é o que o Quito deu àquela gente mesmo no momento da morte do seu amigo.
Porque na voragem dos dias de hoje, até às amizades são esquecidas, até à derradeira homenagem a quem parte deixou de se usar.
Mas o Quito Pereira não esquece, não se deixa enredar pela insensibilidade dos tempos actuais que há de destruir a civilidade humana.
Parabéns Quito por seres como és.
Um grande abraço
Bem - Hajas Rui e todos aqueles que comentaram o texto e o viveram ao redor da lareira ...
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