terça-feira, 19 de novembro de 2019

RIO DE OUTONO ...





Rio Ocreza ...

Regressaram os dias tristes. E as noites de Outono. Pelo meio da tarde, as nuvens descem sobre as montanhas. Uma estranha neblina invade o vale e o Sol, que não se deixa ver, resguarda-se nas entranhas do Moradal. Lá fora, o murmúrio de uma aragem agreste varre a planície e o planalto. É a dança do vento. As árvores dobram-se em agonia, desnudadas de folhagem. Há uma estranha calma nesta vertigem espacial. Parece que o Universo parou. Até uma nora à beira do caminho parece comungar deste estranho hiato do Tempo. Há muito que as suas rodas dentadas das engrenagens carcomidas de ferrugem deixaram de gemer o seu arrastado pranto. Mas é uma estranha ilusão. Aos dias continuarão a suceder as noites. E a noite voraz engole a aldeia num manto de escuridão. É hora de arrumar as alfaias. De resguardar o gado que se passeia pelos campos. De acender os paus com que se ateia o fogo. De colocar a panela de ferro tripé ao lume. De ir à aloje e abrir a torneira da pipa a compasso. De encher o jarro de vinho vermelho e espesso. De assar uma fatia de toucinho na brasa. Sente-se agora o acolhedor estalar da lenha. Na cozinha rústica, o fumo esvai-se pela chaminé enegrecida. E é ao clarão da lareira que se põe uma toalha branca na mesa tosca, memória dos antepassados. Num cesto repousa o pão quente, a côdea apetitosa a estalar. Neste ambiente de magia, já cheira a caldo saboroso. A mulher, de tez enrugada, sentada no pequeno mocho de cortiça, vai mexendo o caldo com uma colher de pau em movimentos ritmados. Tem os olhos fixos na fogueira e pressente-se que está ausente. No regaço do avental negro, o abanador com que vai atiçando as brasas. O homem, também distante nos meandros do seu pensamento, medita nas coisas sérias da vida. Agora que a noite se acomodou sobre a aldeia, a temperatura gélida tomou conta deste Lugar. E lá ao fundo, no coração do vale, junto ao pontão do Tabuinhas, corre um rio. Sente-se o seu cantar cristalino, por entre arvoredo e penedos. Mas ali, naquela garganta estreita, o Ocreza ainda não tem estatuto de rio. Chamam-lhe apenas ribeira - a ribeira do Ocreza. Mas por aqui, nesta paisagem agreste e desolada, é este o rio de esperança pertença deste povo -  o seu rio de Outono.
Q.P

2 comentários:

  1. Excelente! Para quando um Livro? Parabéns. Um abraço.

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  2. O Ocresa pode não ter o estatuto de Rio, mas tu tens o estatuto de escritor e sem dúvida que os numerosos textos que já passaram por este blogue bem que davam um excelente livro...

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