quinta-feira, 3 de setembro de 2020

ENCONTRO COM A ARTE - PROSA

MINAUS

O Minaus levava a felicidade nas palavras

Desconheço se o confinamento refina a necessidade das palavras ou daquilo que elas nos levam. O que é facto inquestionável é que estamos com a necessidade das promessas à flor da pele e bebemos mais sofregamente uma notícia esperançosa do que uma novidade fatídica. A tristeza cansa-nos e seca as lágrimas no fim de tanto entristecer. Ao sabermos que as coisas podem ficar bem e ser melhores no devir dos dias, sentimos que vale a pena partilhar o espírito que anima os otimistas
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Na minha aldeia conta-se uma história passada com uma das figuras marcantes de uma época, na segunda metade do século XX. O Minaus era o terceiro de uma trípode de que aqui já falei. Ele, o Galego e a Lindaura eram as personagens de ficção que qualquer contista pagaria para ter sempre em cima do teclado do seu computador.

Conheci-lhe muito pouco do perfil. Lembro-me do seu nariz adunco e uma corcunda que, à luz da distância de quase cinquenta anos, hoje me levanta dúvidas. Não sei se era realmente corcunda ou se era o simples bojo da taleiga que levava sempre às costas, quer andasse no peditório, quer descesse a Moimentinha, à taberna e mercearia do Peliqueiro para mercar aquilo que mais falta fizesse em casa.
Ninguém lhe conhecia trabalho ou ocupação e, por isso, a sua família ia vivendo a poeira dos dias com algum esforço, mas sempre com algum pão na mesa, umas azeitonas e, no tempo delas, as castanhas que entoiriam as barrigas dos pobres.

Acordava com as galinhas e saía de casa com a taleiga vazia, conhecendo-lhe bem as formas que queria mais tarde encher com milho, legumes, batatas e outras viandas que uma viúva ou os caseiros ou proprietários mais abastados lhe dariam em troca de pequenos serviços que prestava, fosse a rachar lenha, fosse a roçar uma parede, fosse a levar um molho de erva para as lojas. O Minaus era pau para toda a obra e sentia que nessa troca de pouco por muito não poderia ser apelidado de pedinte, ao contrário da Lindaura, que descaradamente pedia e sabia fazer os choradinhos que comoviam.

A sua dignidade de homem e pai de família nunca o fizeram estender a mão, mas se alguém lhe dissesse que não tinha nada em géneros com que retribuir o favor, dizia levemente, ao correr do ceceio: “se me quiser dar uns minaus eu aceito”.  Os ‘minaus’ eram o dinheiro, os tostões, as moedas, enfim, o metal sonante de que ele tanto necessitava para pagar as contas do vício da aguardente e a pouca mercearia que comprava ao Peliqueiro. Deram-lhe também a alcunha, que arrumou o nome para o esquecimento. O seu nome verdadeiro, sabiam-no, talvez, a mulher e os filhos, mas não lho usavam, pois para uma era “homem” e para os outros era “pai”. Como na campa não foi colocada lápide, mais ninguém soube como se chamava, mas todos sabiam quem era o Minaus.

Esta forma de encerar o caráter com alguma dignidade e nobreza tinha as suas vantagens. O Minaus não tinha escola, mas tinha esperteza e capacidade de ver para além do dia de amanhã. A mulher, cosida em casa nos afazeres da criação de meia dúzia de cachopos, admirava-o secretamente e pactuava com este tipo de indigência a que o marido os obrigava. Mais em recato, quando se encostavam no canto da casa ampla, no colchão de palha, e quando os petizes já iam no segundo sono, dizia-lhe: "Ó homem, é verdade que não faltas com nada em casa para nós e os pequenos e temos sempre pão para pôr na mesa, mas estes teus filhos também precisam de algumas alegrias. Estão a ficar sem sonhos"

O Minaus ficou a remoer as palavras da companheira e quase não dormiu. Reconhecia em cada palavra a força da verdade e não tinha como fugir. Mas como dar alegrias a quem o pão na mesa não bastava? Ele não tinha nada mais que lhes dar, a não ser…a não ser a alegria do futuro.  Iria dar alegria a crédito, se é que isto é possível. Então disse, assertivo: "Amanhã de manhã, ao mata-bicho, ouve o que eu digo e não me desfaças a meada!"

A Combinação manteve-se e nessa manhã, com os pequenos à volta da mesa, disse: "Mulher, amanhã vai a Lamego, ao Pantaleão da Ponte, e compra uma ovelha prenha. Quando for lá para outubro, já os carneiros estarão grandes e vamos mandar tosquiá-los. Com a lã vais fazer uma camisola nova para cada um dos nossos filhos, que hão de fazer inveja a todos os gaiatos aqui da Juvandes."

Os miúdos, ao ouvirem isto, saltavam de imensa alegria e batiam palmas. Ainda que esfarrapados e sem roupa de sair. Camisolas novas eram a essência da felicidade. Então, o Minaus rematou com a maior das verdades da política: "Se sem camisolas, rotos e esfarrapados já estão tão felizes, quando as tiverem vestidas, ninguém poderá com eles!"

Professor Antonino

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