Marília Noronha nessa noite quase não dormiu.
Tinha descoberto na pequena pasta do seu marido uma sensual “lingerie” vermelha acabada de comprar. Ainda pendia dela, até, a etiqueta da loja! Era claro, para Marília, que essa seria a prenda que ele lhe iria oferecer no dia seguinte, data do seu 35º aniversário. As coisas no casamento não andavam a correr muito bem, desde há muito. Por isso aquela prenda entusiasmou-a. Talvez fosse o sinal de que a relação entre ambos se viesse a normalizar. De facto, o Felisberto Noronha, seu marido, era uma pessoa educada, meiga, nunca a tinha tratado mal. Mas ela sentia que o amor já se tinha esvaído. Todos os pretextos eram bons para ele se desculpar e adiar para o dia seguinte, qualquer tentativa dela para fazerem amor. Ela ainda gostava dele, apesar de tudo, mas achava que numa relação conjugal, ser boa pessoa, educado, meigo, carinhoso, não era tudo! Nem, porventura, seria o mais importante. Entendia que a relação sexual era indispensável. Mas apercebia-se que, em vez disso, o marido já quase não conseguia ocultar uma indisfarçada repugnância diante dos jogos de sedução e das carícias que ela lhe fazia, tentando os jogos preliminares e a consumação do acto de amor. - - - - - - Porém, a descoberta daquela prenda escondida, que ele em segredo lhe tinha comprado deixou-a eufórica! A relação conjugal iria voltar a ser normal! Manhã cedo, logo que ele foi para o trabalho, ela saiu de casa, foi ao cabeleireiro e esmerou-se em melhorar o seu visual. Cabelo, unhas, lábios, sobrancelhas, tudo foi retocado para o receber à noite o mais bonita possível. Ao anoitecer, pôs a mesa, com duas velas acesas, uma garrafa de champanhe a gelar no “frappé”, o CD “My Way” de Frank Sinatra a girar baixinho, e a TV ligada, para ir olhando distraidamente as notícias enquanto esperava pelo marido. Esperou e começou a enervar-se. O tempo passava e, como nos dias anteriores em que ele chegava a casa muito tarde, queixando-se de cansaço e de excesso de trabalho, o relógio corria e ele nunca mais aparecia para lhe dar os parabéns e oferecer-lhe a “lingerie” que ela bisbilhotara na sua pasta. Subitamente a TV interrompeu a emissão para transmitir em directo um pavoroso incêndio que acabava de deflagrar na Fábrica Cosmos, Lda, a firma onde ele trabalhava... Fixou os olhos, apurou os ouvidos, aumentou o som da televisão e reconheceu nas imagens o edifício fabril que ela tão bem conhecia. Observava, aflita e tensa, a azáfama dos bombeiros empoleirados nas suas escadas “magirus” derramando jactos de água sobre as labaredas que iam consumindo a fábrica. Roía as unhas tão criteriosamente tratadas pela “manicure”, enquanto devorava as imagens terríficas do pequeno écran... A repórter da TV de serviço no local informou que haviam sido localizadas duas pessoas com vida dentro do edifício, apanhadas desprevenidas pelo inesperado e repentino incêndio, que os bombeiros tentavam resgatar. Minutos depois a locutora entrevistou o chefe dos bombeiros que sossegou os telespectadores, dizendo que as tais duas pessoas já estavam livres de perigo. Certamente aterrorizadas pela morte iminente, aduziu o bombeiro, as vítimas foram encontradas fortemente abraçadas uma à outra. Marília acalmou, quando o bombeiro as identificou. Uma delas era o seu marido e estava bem. A câmara rodou e filmou as vítimas deitadas cada uma em sua maca para serem transportadas para o Hospital. Uma das vítimas, vestia calções de cabedal com tachas prateadas e camisa de alças também em cabedal, donde pendiam grossas correntes metálicas. Um chicote negro ainda lhe pendia inerte da mão. Meio chamuscado... O seu nome, Carlos da Silva. A outra das duas vítimas, vestia uma delicada e sensual "lingerie" vermelha com folhos. O seu nome, disse a repórter, era Felisberto Noronha...
Rui Felício
Um sonho tão real não merecia este desfecho!
ResponderEliminarUma verdadeira tragicomédia à boa maneira de Rui Felício.