Aproveita o que não presta e terás o que te é preciso.
Nesta sociedade de consumo descartável, em que muito parece efémero e pouco é duradouro, fica-nos a sombra daquilo que alguma vez tivemos e hoje gostaríamos de voltar ou continuar a ter. Usamos, dispensamos e botamos fora tudo o que já não serve, por defeito ou feitio. Falo de coisas, de ideias e de pessoas.
Quando uma coisa é deixada de parte ou lançada fora, não é só ela que se vai: com ela seguem as ideias e vivências que evocaram e as pessoas que de alguma forma se relacionaram com elas. Um brinquedo que na altura nos parecia velho e sem uso, que acabamos por deitar ao lixo, levou consigo muito mais do que era. Não o vendo, já não lembramos aquele ou aquela que no-lo deu nem os amigos que à volta dele brincaram.
Em contra corrente, temos agora em nós um museu da alma que nos traz a saudade do que já tivemos. Por isso, compreende-se que alguma coisa fique no tempo e permaneça perto, à vista da passagem repentina do olhar. Todos guardamos uma peça de loiça dos avós, um livro da juventude, um brinquedo da infância e tantas coisas mais. Achamos mesmo o máximo ver à venda o livro da nossa antiga 3ª classe, o treco-treco ou a trotineta de madeira que se comprava nas feiras. Só não pegamos e não damos uma volta airosa pela rua porque temos aquela vergonha da adultice, de ar sisudo, que não acha piada a estas extravagâncias.
Recordo-me de uma profissão que na minha infância já quase estava extinta, mas que ainda tive o privilégio de ver operar. Lembro-me vagamente do deita gatos que passava pela aldeia e, de uma vez só também compunha sombreiros de pano, compunha potes e amolava tesouras e navalhas.
O deita-gatos e o compõe-potes tocavam profundamente nos corações das donas de casa que tinham tido a visita do infortúnio num prato ou travessa que se partira ou num pote que ficara tempo demais ao lume sem água e, por isso, se rompera. O amolador era mais eclético e salvava a figura do dono da casa, mas também da menina namoradeira que precisava do seu sombrinha para andar de enleio às voltas do adro ou da feira.
O deita gatos passava e, meticulosamente, praticava uma cirurgia plástica que, pragmaticamente, dava mais uns anos de vida ao prato ou à malga, ignorando que, muitos anos depois, o seu trabalho valorizaria tais objetos e que, por cada gato, haveria uma memória a evocar. Ninguém pergunta ou sabe a idade do prato, mas, ao vermos os gatos, vemos logo que é coisa antiga e sobrevivente ao tempo. Mesmo que não seja antiga, é assim que a vemos. Se para a senhora da casa foi um remedeio necessário, para os herdeiros é uma preciosidade. É estranho? Claro que sim, mas é desta forma que as memórias se fazem.
Uma curiosidade linguística: a palavra “gatado”, significando algo errado, imperfeito ou corrigido, tem a ver com o exercício desta profissão e, na literatura, um dos poetas maiores do século XX não deixou passar ao lado a subtileza dos remendos no corpo e na alma. Deixo-vos com ele:
Ó rapaz que deita gatos
Deitas gatos só em pratos,
Só em tachos e tigelas,
Ou deitas gatos também
Nas almas e no que há nelas
Que as quebra em mal e em bem?
Ah, se, por qualquer magia,
As tuas artes subissem
Àquela melhor mestria
De pôr gatos que se vissem
No que sonho e no que sou!
Então...Qual então! Que tratos
Dei a um poema que surgiu!
Só consertas, só pões gatos
No inteiro que se partiu.
O partido nasceu
Nem tu consertas nem eu.
Fernando Pessoa, 1933
Foto: Deita Gatos, 1910. Aguarela sobre papel. Coleção Museu Almeida Moreira, Viseu. Exposta temporariamente no Museu Grão Vasco.
Por Prof Antonino Silva
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