domingo, 26 de setembro de 2021

AQUELA NOITE EM BOLAMA...Texto de KITO PEREIRA

 


AQUELA NOITE EM BOLAMA …

Foi numa tarde quente que parti. De mala de cartão na mão e uma sacola ao ombro, despedi-me do meu batalhão e da minha companhia militar com quem cheguei a África. Para trás, ficaram amizades forjadas na guerra, segredos contados, cumplicidades repartidas e revelações dos encontros e desencontros dos amores deixados na pátria – mãe, fosse de familiares ou das namoradas que de letra redonda e em papel amarelo fornecido pelo exército, levavam e traziam juras de amor eterno.

O meu destino provisório era Bolama. Em trânsito para uma companhia africana, eu assentava arraiais naquela ilha paradisíaca, de vegetação luxuriante e de perigo reduzido em cenário de guerra. Seria um hiato no sobressalto das armas. De barco lá cheguei. Numa canoa comprida e sem velame, impulsionada por um motor fora de bordo, onde se misturavam alguns militares com uma plateia de africanos de roupas coloridas, sentados em cima de sacos de arroz e que levavam consigo gaiolas de pássaros exóticos, peixe seco que deitava um cheiro nauseabundo, cabritos presos por uma corda e galinhas em capoeiras improvisadas. O excesso de carga fazia o barco quase soçobrar, com a água do rio a ameaçar transbordar e a invadir a embarcação e a arrastar tudo para o fundo. Nada que incomodasse os africanos, habituados a este diálogo marítimo entre a canoa e o Geba.

Bonita era Bolama. Uma viagem num pequeno jipe de patrulha, dava para apreciar aqui e ali belas casas senhoriais de fachada imponente e em avançado estado de degradação. O soldado africano que comigo seguia ao volante, cantarolava canções africanas, descontraído. E eu, habituado às picadas de onde podiam vir todos os perigos, de dedo fixo no gatilho, desconfiava de tanto turismo. A chegada ao quartel depois da missão de que fora incumbido, era sempre o meu descanso.

Naquele quartel coabitavam militares africanos dos vários ramos e especialidades das Forças Armadas. A nossa missão era aprender a conviver ainda mais com a realidade e os costumes indígenas, antes de integramos as companhias para onde seríamos enviados, no meu caso no leste da Guiné. Foram tempos calmos, sob o comando do capitão Repolho de seu nome. Tempos mesmo aprazíveis, até um dia que foi uma noite num botequim da ilha. Uma discussão entre elementos da tropa africana dita normal e um grupo de fuzileiros navais também africanos, descambou numa feroz e perigosa zaragata. Disseram testemunhas, que os fuzileiros que eram vaidosos e se gabavam de ser tropa de elite, chamaram aos outros “tropa – macaca”. Foi o rastilho para uma desordem monumental naquele pedaço de ilha, com as restantes tropas a apartar com dificuldade os grupos desavindos e a encurralar os fuzileiros e a mete-los à força na sua unidade naval. Daquela refrega onde andei meio perdido até de madrugada, sempre sob as ordens do capitão Repolho, lembro-me de ter entrado na enfermaria e ver deitado numa enxerga um gigante negro com perto de dois metros de altura e de soberbo porte físico,  que sobreviveu a trinta e nove ferimentos de arma branca exaradas no relatório médico. Um mar de sangue.

Afinal, a guerra naquela noite tinha - se instalado em Bolama. E o perigo não tinha vindo do exterior, mas de uma guerra intestina entre militares africanos que viviam sob a capa protetora da bandeira portuguesa.

Kito Pereira            

1 comentário:

  1. Obrigado por mais este texto que desta vêz aborda a tua chegada a Bolama na Guiné, com episódios que aconteceram durante essa amargurada e infeliz guerra!

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