AQUELA NOITE EM BOLAMA
…
Foi numa tarde quente que parti. De mala de cartão na mão e
uma sacola ao ombro, despedi-me do meu batalhão e da minha companhia militar
com quem cheguei a África. Para trás, ficaram amizades forjadas na guerra,
segredos contados, cumplicidades repartidas e revelações dos encontros e
desencontros dos amores deixados na pátria – mãe, fosse de familiares ou das
namoradas que de letra redonda e em papel amarelo fornecido pelo exército,
levavam e traziam juras de amor eterno.
O meu destino provisório era Bolama. Em trânsito para uma
companhia africana, eu assentava arraiais naquela ilha paradisíaca, de
vegetação luxuriante e de perigo reduzido em cenário de guerra. Seria um hiato
no sobressalto das armas. De barco lá cheguei. Numa canoa comprida e sem velame,
impulsionada por um motor fora de bordo, onde se misturavam alguns militares
com uma plateia de africanos de roupas coloridas, sentados em cima de sacos de
arroz e que levavam consigo gaiolas de pássaros exóticos, peixe seco que
deitava um cheiro nauseabundo, cabritos presos por uma corda e galinhas em
capoeiras improvisadas. O excesso de carga fazia o barco quase soçobrar, com a
água do rio a ameaçar transbordar e a invadir a embarcação e a arrastar tudo
para o fundo. Nada que incomodasse os africanos, habituados a este diálogo
marítimo entre a canoa e o Geba.
Bonita era Bolama. Uma viagem num pequeno jipe de patrulha,
dava para apreciar aqui e ali belas casas senhoriais de fachada imponente e em
avançado estado de degradação. O soldado africano que comigo seguia ao volante,
cantarolava canções africanas, descontraído. E eu, habituado às picadas de onde
podiam vir todos os perigos, de dedo fixo no gatilho, desconfiava de tanto
turismo. A chegada ao quartel depois da missão de que fora incumbido, era
sempre o meu descanso.
Naquele quartel coabitavam militares africanos dos vários
ramos e especialidades das Forças Armadas. A nossa missão era aprender a
conviver ainda mais com a realidade e os costumes indígenas, antes de
integramos as companhias para onde seríamos enviados, no meu caso no leste da
Guiné. Foram tempos calmos, sob o comando do capitão Repolho de seu nome.
Tempos mesmo aprazíveis, até um dia que foi uma noite num botequim da ilha. Uma
discussão entre elementos da tropa africana dita normal e um grupo de
fuzileiros navais também africanos, descambou numa feroz e perigosa zaragata.
Disseram testemunhas, que os fuzileiros que eram vaidosos e se gabavam de ser
tropa de elite, chamaram aos outros “tropa – macaca”. Foi o rastilho para uma
desordem monumental naquele pedaço de ilha, com as restantes tropas a apartar
com dificuldade os grupos desavindos e a encurralar os fuzileiros e a mete-los
à força na sua unidade naval. Daquela refrega onde andei meio perdido até de
madrugada, sempre sob as ordens do capitão Repolho, lembro-me de ter entrado na
enfermaria e ver deitado numa enxerga um gigante negro com perto de dois metros
de altura e de soberbo porte físico, que
sobreviveu a trinta e nove ferimentos de arma branca exaradas no relatório
médico. Um mar de sangue.
Afinal, a guerra naquela noite tinha - se instalado em
Bolama. E o perigo não tinha vindo do exterior, mas de uma guerra intestina entre
militares africanos que viviam sob a capa protetora da bandeira portuguesa.
Kito Pereira
Obrigado por mais este texto que desta vêz aborda a tua chegada a Bolama na Guiné, com episódios que aconteceram durante essa amargurada e infeliz guerra!
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