Guiné Bissau
O CAÇADOR …
Victor Baldé dava nas vistas pela sua compleição física de braços robustos e um tronco musculado numa
cabeça de menino. Uns olhos grandes que lhe sobressaiam da tez escura e duas
marcas no rosto feitas com um ferro em brasa junto das fontes, davam - lhe o
estatuto de confrade da etnia Fula, supostamente a mais arguta das tribos
africanas da Guiné.
Um dia apareceu à porta da Escola Regimental de Canjadude.
Queria saber ler e escrever. E o furriel miliciano, atirado para a fogueira de
Mestre – escola onde tudo era improviso, convidou - o a entrar e sentar – se
num banco de madeira. Uma tábua comprida suportada por dois bidons, um em cada
extremo da prancha, servia de carteira onde se amontoavam os meninos, os livros
coloridos, os lápis e as afiadeiras. Não foi preciso esperar muito tempo para
perceber que o Victor Baldé era mais perspicaz que os outros. Rápido aprendeu
fazer o seu nome em letra redonda. E de somar 2 + 2 igual a 4.
Por vezes, o Victor desaparecia da tabanca. Era hora de
caçar. Por lá andava sozinho, sumindo – se na mata sem deixar rasto. Descalço,
de tronco nu, partia de sacola ao ombro, levando consigo uma velha e rudimentar
espingarda e uma faca de mato à cintura e pela bolanha andava dois ou três
dias. A noite morna africana, servia-lhe de manta de agasalho ao corpo desnudado.
Nada que preocupasse a comunidade a sua ausência. Como sempre, voltava a casa
trazendo acondicionada em folhas largas de palmeira e envolta em pedaços de
sarapilheira, a caça que previamente tinha esquartejado no mato e que
transportava à cabeça. Depois, na tabanca e em cima de uma esteira, a carne
sobrevoada por moscas era leiloada e desaparecia num ápice, sendo a gazela o
petisco mais procurado.
Numa
tarde, naquela prática que já lhe vinha dos antepassados, de novo partiu e por lá andou três dias. E ao quarto dia, voltou.
Como era habitual, trazia à cabeça as peças caçadas. Mas numa mão e de rastos
preso pela cauda, um pequeno jacaré que tinha abatido nas margens do revolto
rio Corubal. Um troféu que exibia com orgulho e que arrastou durante os onze
quilómetros que mediavam entre o rio e a tabanca seu porto de abrigo. Grande foi o
entusiasmo mesmo na família militar. Todos queriam ver e ser fotografados junto
daquele projeto de jacaré. Então, com surpresa ou talvez não, o animal foi
esquartejado e vendido aos muitos interessados na iguaria na tabanca. E o
Victor, de novo sentado no banco da escola, confessou na sua simplicidade de
menino – grande, que o banquete de jacaré tinha sido de arromba.
Kito Pereira
Obrigado Quito.
ResponderEliminarMais um texto interessante sobre a tua passagem pelas terras da Guiné, em momentos complicados da guerra colonial.
Episódios que marcam uma vida inteira!
Boa noite.
ResponderEliminarUm texto de outras paraguens...com bons petiscos.
Eu pensava que o Quito andava por Lagos,lisboa,Leiria ou mesmo Castelo Branco mas desta vez foi mais longue...já chegou e já nos deliciou com mais este texto.
Obrigado e boa estadia ai por Coimbra.
Boa noite Lucinda.
ResponderEliminarO Quito agora divide o tempo por Coimbra, Lagos e Leiria.
Agora está por cá, fomos almoçar juntos no domingo mais o Alfredo e a Daisy, e deu para meter este texto!
Beijinho
Isso eu queria pra minha vida: estar com essa malta linda.
EliminarChama a Mamãe!
Amei o Victor (aliás, um filho meu se chama Victor!)
ResponderEliminarQuanto ao jacaré, já devo ter comido a carne, pensando ser a do Pirarucu.
Aqui em Manaus têm restaurantes que servem a carne do jacaré. Conscientemente, eu não consumo (a não ser que me enganem, e muito bem!).
Ufa! À medida que lia, meu pensamento - veloz - já imaginava o Victor não ter retornado às aulas, receio daquele dia ter sido o "dia da caça".
Esse Victor deve ter uma sabedoria ímpar, se ainda vivo. Se não, privilegiados aqueles que tiveram convivência com ele.
Como estás, Kito, tu e tua São?
Beijos em todos, com todo respeito, claro!
Chama a Mamãe!
Estamos bem, amiga. Sempre com interesse com as notícias do Brasil e muito em particular de Manaus onde esperamos que o maldito vírus não provoque mais vitimas.
EliminarGRANDE ABRAÇO e beijos aos netos ...