quarta-feira, 2 de março de 2022

ESTRELA DO MAR - LAGOS Texto de Kito Pereira

ESTRELA DO MAR 

                                                                                                                                       Lagos . São seis e trinta de um sereno amanhecer. “Estrela do Mar”, embarcação de pequeno calado, dobra a barra e faz-se ao largo. Ao leme, Mestre Florival, rosto sulcado pelas rugas que o mar esculpiu, samarra pelos ombros, um boné companheiro de tantas fainas descaído sobre os olhos calmos e experientes, com que observa o oceano palmo a palmo. Rotina de todos os dias. Uma hora de viagem. Ao longe, lá ao longe, a silhueta esfumada de Portimão, enquanto a rede vai descendo sob o marulhar das águas e o “toc-toc” ritmado do motor, batendo lá no fundo da traineira. Hora a hora, o Sol vai subindo no horizonte. Uma enorme bola de fogo, que cobre com a sua luz generosa, um mar de prata. É tempo de refeição. É tempo do farnel, que se come com o religioso ritual de todos os dias: o pedaço de pão, o canivete com que se corta a fatia de queijo, o gole de vinho retemperador para a pesada tarefa que se segue – o erguer das redes. Foi boa a pescaria do Mestre Florival. No rosto moreno, a alegria do esforço compensado, na lotaria que o mar amiudadamente lhe reserva. O fim da faina, quando o sol já se deita no regaço do mar. A satisfação do regresso a casa. De partilhar com a sua companheira de labuta do caldo fumegante que ela, no sobressalto do caminhar pela vida ao sabor das marés, vai preparando na ânsia de o ver pisar terra firme. À noite, ao serão, numa roda de amigos, o velho baralho de cartas batido no tampo da mesa gasto pelo Tempo, o cigarro barato a pender - lhe dos lábios, Mestre Florival fala deste ou daquele exemplar mais corpulento içado na rede, ou, quem sabe, do António José, que desapareceu ali mesmo ao virar da barra, sem que ninguém lhe pudesse acudir. Os outros ouvem, num silêncio magoado, irmanados na dor e comungando do mesmo pensamento legado pelos seus antepassados… O mar dá. O mar tira. Mar pão. Mar cão.                                                             KITO PEREIRA

1 comentário:

  1. A faina de um dia nas diversas fases duma embarcação na labuta do seu mestre e seus pescadores, de no final da faina de chegarem ao ponto de partida com peixe para venda e de se encontrarem com as famílias e depois do caldo fumegante, se prepararem para o novo dia que se aproxima.
    Vida dura!

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