Guarde-me aí a cachopa
Ele contava-me exatamente uma história que, não sendo fantástica, era das mais belas que eu ouvia. E repetia-a, uma e outra vez, sem acrescentar nem tirar nada, o que me fazia pensar que tanta coerência era capaz de fazer a história verdadeira. Noutras vezes, era ela que contava de novo, sempre de forma igual e tão coincidente com a versão dele, que tal história só poderia ser verdade.
Ele tinha feito vinte anos há muito pouco tempo e era recruta no quartel de Lamego. A Europa flagelava-se numa guerra sem fim e Portugal estava de sobreaviso. Sendo o filho mais velho e quase amparo de família, isso não o tinha livrado da incorporação e, por causa disso, partilhava as dormidas entre o quartel de Santa Cruz e a sua humilde cama no quarto da loja em casa dos pais, em Meijinhos. Fazia a pé o trajeto recorrente de uns 14 quilómetros, ao domingo à noite, para o quartel, e à sexta, para casa.
Pelo caminho passava junto a uma casa de perpianho recentemente construída com uma data na fachada. Dizia 1932, um ano antes do nascimento dela. A cachopa tinha então onze anos e brincava na larga eira de pedra, local que era avistado da rua. Ele passava e achava-lhe piada. Metia conversa com os adultos presentes e ficara a saber que a menina não era filha nem neta; era, isso sim, uma sobrinha-neta que fora, aos sete anos, servir para casa do Malhão e por lá ficara, metade como criada e metade como filha. Eles valorizavam o trabalho como se aprecia o esforço de um serviçal, mas amavam-na e cuidavam dela como se filha fosse. E nos limites de uma vida de sacrifício, onde nem tudo chegava à mesa dos pobres nem dos remediados, pode dizer-se que os tios-avós e a sobrinha-neta eram felizes.
Num domingo de fim de verão, ao descer para a cidade, o soldado parou e meteu, mais uma vez, conversa com o dono de casa que, sentado à porta, apreciava o sol que ia dourando o vasto manto de grãos de milho estendidos na eira e, pensativamente, cogitava na possibilidade de o recolher, por causa do orvalho das noites que costumava aparecer por alturas das festas da Sr.ª dos Remédios. No fio da conversa, ficou a saber mais umas quantas coisas da cachopa e, quando a curiosidade já não queria mais coisa, virou-se para o ancião e disse:
- Olhe, guarde-me aí a cachopa, que eu, quando ela for maior e tiver eu a minha vida arranjada, voltarei cá para a namorar e pedir em casamento. O Malhão ficou admirado com tamanha confiança, mas o certo é que nove anos depois casaram e tiveram dez filhos.
Eu sou o sétimo na linha da sucessão.
Professor Antonino Silva
ELE - O recruta no quartel de Lamego
texto publicado no dia 19 de Março dia do pai
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