segunda-feira, 11 de abril de 2011

PALAVRA DE HONRA



( Depende da boca de quem sai... )

Eram oito soldados e um furriel, armados até aos dentes...
Pararam à porta da azenha do Ti Pedro Moleiro, empoeirado, velho e alquebrado de uma vida inteira a lutar para comer o pão de cada dia.
Passado um instante, a gente do Casal da Mizarela, paredes meias com as Torres do Mondego, chorava impotente a olhar o Simão, filho do moleiro, atravessar a terra no meio da escolta, com os braços algemados, como um bandido, como um degredado.
O velho Ti Pedro, assim que lhe arrebataram o filho, ainda acorreu para o abraçar. Mas custava-lhe a andar e quando chegou à entrada já o rapaz ia longe.

O Viriato, regedor da freguesia, desfazia-se em vénias para um fulano empertigado, de gabardina de cabedal e chapéu de feltro, e após um surdo colóquio, dirigiu-se à populaça intimando-a a regressar às suas casas e ao trabalho.

Amedrontados, um por um, os aldeões foram desfazendo o ajuntamento. Menos a Margarida, namorada do Simão, que em altos brados exigia ao tal homem de gabardina que explicasse o que tinha ele feito para ir preso. Ele era o amparo do pai, mourejava dia e noite para moer o milho, para vender a farinha, para angariar o sustento do velho e dele próprio. E queria saber o que lhe iam fazer!
O Simão anda a conspirar contra o Estado, é um subversivo, foi a resposta recebida.
Mas dou-lhe a minha palavra de honra que nada de mal lhe vai acontecer!, disse o tal do chapéu, com um cínico sorriso e ar melífluo.
Até vai ser bom para ele. Vai viajar, passar umas férias em Cabo Verde!

A Margarida cuspiu com asco para o chão. E disse-lhe:
A sua palavra de honra é uma gazua. Esconde a falta de força moral para me convencer, tentando forçar-me a acreditar em si.
Mas agora sou eu que lhe dou a minha palavra de honra, que está perto o dia em que lhe serão pedidas contas a si e a outros seus colegas, pelo mal que andam a fazer.

A um assobio do homem da gabardina, o furriel e dois soldados voltaram atrás, algemaram-na e levaram-na também...

                                Rui Felício
( escrito segundo a grafia antes do Acordo Ortográfico )

12 comentários:

  1. Para que não se esqueça nunca, que a repressão não era dirigida só aos intelectuais...

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  2. Bem recordado,Rui.
    Simãos,infelizmente(ou felizmente,conforme a perspectiva) houve aos milhares.
    Os Viriatos e homens da gabardine,agora reciclados em democratas,continuam.

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  3. Isto exctamente não vi mas vi o equivalente e bem pior, em situações diferentes. Por isso, ninguém me venha dizer que não existiu ou não existe neste mundo e de todos os lados. Fatalidades inaceitáveis.

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  4. Artigo puro e duro que hoje o Rui Felício nos traz à lembrança.
    Quando fui Cabo Verde visitei o Tarrafal.
    Senti um murro no estômago...

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  5. Parabéns, Rui. Conseguiste, numa linguagem simples e crua, lembrar os tempos cinzentos da nossa memória colectiva. "...pararam à porta da azenha do Ti Pedro Moleiro, empoeirado, velho e alquebrado de uma vida inteira a lutar pelo pão de cada dia ..."... depois ..." a sua palavra de honra é uma gazua ...". Texto a que imprimiste o dramatismo q.b., numa prosa escorreita e sem artifícios ...
    Abraço

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  6. Os intelectuais não eram as únicas vitimas da repressão, como aqui bem se documenta. Eram apenas mais visíveis socialmente e, por isso, são hoje conhecidas grandes figuras da intelectualidade que foram vitimas do fascismo.
    Ficaram no anonimato, perdidos na voracidade do esquecimento temporal, muitos milhares de homens e mulheres que se bateram pela conquista da liberdade.
    Para este Simão, deixo a minha homenagem, o meu agradecimento, a minha admiração pela sua coragem e determinação em "conspirar" contra o Estado Novo. Foram homens como este que nos permitiu conhecer o sonho da liberdade.
    A Margarida não entra nesta história como simples decoração romântica.
    A Mulher, a companheira desses Homens, foi pedra fundamental na luta contra a repressão.
    Foram muitas as que também conheceram os calabouços da polícia política pela simples razão de se insurgirem contra a prisão dos seus homens. Nem precisavam de ser "subversivas"...

    Rui Felício lembra-nos o passado, para que no presente sejamos capazes de saber o que queremos no futuro.

    Aquele abraço.

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  7. "estória" simples...mas cruel e que retrata bem o tipo de regime politico que se vivia nessa época.
    Tal como a Celeste Maria também estive no Tarrafal...mas em visita turistica!

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  8. E no Bairro? Lembram-se do "Calceteiro" ? do Lourenço? e tantos e tantos outros esbirros... e ainda a mais de meia centena de bufos... o bairro era um covil de pides e de bufos!

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  9. Bem lembrado Rui Pato!
    Nunca me esqueci de um que usava gabardina azul escuro, passeava-se com um cão pastor alemão. Não me recordo do nome, nem isso interessa agora.
    Pois esse tipo, uma vez abordou o meu pai ao pé do Café do Silva, apontou para uma série de estudantes, entre os quais eu me incluia, que debatia as eleições para a Ass. Académica, e disse-lhe:
    - Sabe, gostava de ver esta estudantada toda pendurada pelo pescoço, cada um no seu poste de iluminação ( apontando para toda a Rua A )!
    Talvez assim os outros ganhassem juizo.
    E continuou:
    - E você não se esqueça que é funcionário público, tem obrigação de dar a devida educação em sua casa! Porque é o Governo, contra quem esta cachopada berra, que lhe dá o sustento da sua família.

    Não garanto, claro, que as palavras tenham sido exactamente estas, mas as ideias ainda hoje me martelam o cérebro, quando naquela noite o meu pai mas contou.
    E também não me esqueço do que o meu pai me disse finalizando a conversa:
    - Faz sempre o que a tua consciência te mandar, com cuidado, com reserva, mas sem medo das consequências!

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  10. TERESA LOUSADA DE MENESESabril 12, 2011 4:27 da tarde

    Um texto muito bem escrito que nos trás à memória a dureza e crueldade de um passado não tão longínquo como parece!
    Mentiria se dissesse que vivi esses tempos com intensidade e até com realidade, mas não, não vivi, passou-me um bocado ao lado, mas já hà muito tempo, com o avançar da idade e a maturidade que daí advém, mas mantendo sempre os meus ideais políticos, horroriza-me as barbaridades e injustiças cometidas sobre tanta gente inocente e sacrificada, física e moralmente!
    Sempre vivemos num mundo cão e continuamos a viver, sem nunca saber, o que nos espera...
    -Quanto à"Palavra de Honra" a que tu Rui, te referes e dá o título a este teu texto tão bem escrito, infelizmente banalizou-se, é uma palavra pronunciada amiudadamente por pessoas que nem sequer
    sabem o significado, nem a força que ela transmite!!!
    Felizmente que não há regra sem excepção e para muitos, ainda a pronunciam com o conhecimento da força, honestidade e seriedade que ela contém.

    Obrigada Rui!

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  11. Quando lemos histórias como esta, até nos parece impossível que tivessem existido. Mas existiram.
    Todos nós, uns diretamente ou alguém de família ou amigo, tropeçaram com um destes imbecis, ignorantes e estúpidos cheios de arrogância, do quero posso e mando, de quem com a maior das impunidades cometiam as maiores atrocidades.
    No bairro, todos nós os conhecíamos e alguns até apareciam no Café do Silva. Haviam também os informadores, os bufos asquerosos, que passavam “informações”, muitas das quais falsas ou completamente distorcidas.
    A minha homenagem a todos os Simãos e mulheres que de forma estoica tiveram a coragem de afirmarem a sua liberdade e ajudaram a construir a que temos hoje.
    Obrigado Rui Felício, por nos teres lembrado, de forma brilhante e com realismo, os tempos escuros do fascismo, situações que ainda estão bem vivas na nossa memória.

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  12. "O Bairro tinha a maior concentração de pides e bufos por m2..."
    Estou-me a repetir porque já escrevi isto, algures, há muito tempo.
    Era realmente impressionante, não havia rua que não tivesse um ou dois.
    Ainda por aí se passeiam alguns mas nós somos, de facto, um povo de brandos costumes.
    Eles fingem que eram pessoas como nós e nós fingimos que não sabemos que não eram.
    É a vida...

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