* Rio Mondego *
- Olha que tens que deixar isto pronto hoje!
- Não vai dar, patrão
- Olha que tens que deixar isto pronto hoje!
Já o sol alaranjava no poente e ainda lhe faltava plantar mais de três centos de pés de couve. Aflito, o Horácio tinha a certeza de que não ia conseguir plantar tudo antes de escurecer.
Mesmo assim, de joelhos e cabeça baixa, o suor a arder-lhe nos olhos e a escorrer pela ponta do nariz, frenético, ofegante, ia sachando e enterrando os pequenos caules na terra que antes revolvera com a enxada.
O crepúsculo já sombreava as leiras cavadas e o monte de pés de couve por plantar parecia maior.
Sentiu o barulho de botas cardadas, no lajedo, atrás de si a aproximarem-se.
- Então?
- Não vai dar, patrão!
- És uma lesma. Mas não faz mal. Vem cá amanhã para eu te pagar as horas de hoje. Que nem as mereces, tu bem sabes, mas que hei-de fazer? Vou arranjar outro para fazer o serviço.
- É verdade, aquela quelha ao pé do rio ainda é tua, não é? Aquilo não dá para nada, mas...
- É. Ainda é minha é...
Trôpego, escarrava para a estrada a caminho do casebre onde vivia com a mulher que o esperava com as mãos debaixo do avental.
- Correu bem o trabalho para o Sr. Noronha?
- Não deu...
Sentia as paredes do estômago coladas, causando-lhe agonia e dor. Nem ele sabia bem se da sede, se da fome.
Sentado num tripé à mesa tosca de madeira, com a mulher à sua frente, as unhas sujas, a barba por fazer, a pele tisnada do sol, começou a sorver a sopa rala com um ruído surdo quando chupava o resto que ficava na colher. Abocanhou um bocado de toucinho já rançoso e meteu a garrafa à boca. Via-se-lhe a maçã de Adão a dançar para baixo e para cima, quando o vinho lhe escorria pela garganta.
Depois, arrotou, sentou-se na cadeira de baloiço onde costumava ficar horas a fio, de mãos cruzadas no peito, como num esquife, a olhar o infinito ou a dormir e a ressonar, murmurando quando acordava:
- Não vai dar...
Há anos que vivia assim, desmazelado, um farrapo, farto da vida, sem falar com ninguém, nem mesmo com a mulher a quem só se dirigia raramente, e ainda assim, por monossílabos quase inaudíveis.
Tinha vendido ao Sr. Noronha, por tuta e meia, uma após outra, todas as pequenas propriedades que herdara, para poder comer e alimentar a mulher e o rancho de filhos que criou e que emigraram para Lisboa à medida que foram crescendo.
Bom. Vendido não foi bem. O Sr. Noronha não lhe arranjava trabalho mas a verdade é que o tinha ajudado muito. O Horácio não era mal agradecido...
Emprestou-lhe dinheiro por várias vezes ao longo dos anos. Só que, quando não recebia a tempo e horas o estipulado, executava-lhe as hipotecas que o Horácio tinha assinado para garantir o reembolso dos empréstimos e o pagamento dos juros exorbitantes.
Como num filme retrospectivo, rememorava isto tudo e remoía:
- Não vai dar...só se for a quelha...
Rui Felicio
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Passou-se há dezenas de anos nas Torres do Mondego. Estamos a regredir ou a comparação com os dias de hoje é abusiva?