quinta-feira, 18 de agosto de 2011

BIBLIOTECA "ENCONTRO GERAÇÕES"

CONTOS
Da
Daisy


A pasta fazia-lhe doer a mão, sentia a dor invadi-lo em ondas ténues e espaçadas, misturadas com outra sensação de não-sabia-o-quê. Podia pousá-la. Por momentos. Parar. Mas quando se lembrava da mão-com-a-pasta, estava a atravessar uma rua ou a descer umas escadas, com gente atrás, aos lados e à frente. E, depois, esquecia-se.
Porque a outra sensação, aborrecida, deslocada, o percorria.
Aquela rapariga era gira, ô,ô, bastante engraçada, a pequena…
Tirou os óculos escuros e ficou a olhá-la, agora sem a nuvem castanha pelo meio, a afastar-se, em sentido contrário ao seu, a bambolear as ancas.
- Ò homenzinho de Deus…não vê por onde anda?
As pessoas velhas são muito irritáveis. Tudo lhes faz confusão e as incomoda. Que diabo, ele só atirara com a mala da velhinha ao chão e pisara qualquer coisa, dentro dela, que estilhaçava, num crrac-crrac que lhe fez erguer todos os pêlos do corpo!...Já não se podia admirar as belezas da cidade cosmopolita; já ninguém se podia virar para trás, apreciador, que não houvesse uma velhinha, um velhinho, ou uma criança imberbe e loira que não gritasse:
-Não vê uma pobre velha que mal se pode mexer?
Desastrado! Olhe a minha bengala no chão, seu mariola! Desastrado! Ò velhinho não podias atirar a minha bola para outro sítio? Desastrado!
Desastrado.
A pasta fazia-lhe doer a mão. Lá estava, agora mesmo, a doer-lhe. Ia só a pensar nisso. Só. Para esquecer a outra coisa. Que sabia o que era. Mas que o incomodava. Pronto…já não doía!... Mesmo que se esforçasse, não conseguia sentir a mão. Apertou com mais força, com mais. E com mais. E só o invadia uma sensação qualquer…como se lhe tivesse dado um clister de água morna e…a água subisse, subisse, tépida pelo corpo!
Olá, mas que garota!... Pensar que vai ali sózinha, a coitadinha. E ele para aqui a olhar, olhar. E não podia parar. E não podia virar-se. Sempre em frente, os olhos num alvo qualquer, mas distante, e não dizer água-vai…
E não dizer água-vai.
Atravessou a avenida, passou por dois bancos a insistirem para que ele se sentasse e, por fim, aceitou o convite do terceiro.
Posou a pasta a seu lado. E a mão, que recomeçava a doer-lhe parou de se queixar. Agora era só a outra sensação.
Olhou. Em frente. Não era preciso voltar-se, não era preciso parar. O filme passava à sua frente. E o filme eram as raparigas a andar.
Loiras, morenas e ruivas. Altas e baixas. Gordas e magras. Raparigas!
O corpo todo estava-lhe tomado pela sensação indefinível.
- Olá garota! Nunca lhe disseram que tem uns lindos pés?
Ela passou e nem o olhou.
Mas…pronto! Ficou livre. Falava, sentia-se alegre. Pegou na pasta e continuou a subir a avenida a cantarolar baixinho. Debaixo dos óculos castanhos, tudo lhe parecia cor-de-rosa.
E só lhe doía a mão


-16 de Dezembro de 1971

4 comentários:

  1. Temos hoje mais um conto da Daisy, do seu livro de contos. Com a sua matriz muito própria, a autora transporta-nos numa leitura que nos prende até ao fim. Neste começo de tarde de verão, cá no fundo de Portugal, nada melhor que uma leitura repousante, com um final feliz ...
    Abraço Daisy.

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  2. A mão que dói não é mais que a indisposição visível, incomparavelmente menor que a dor invisível que o homem sente com o passar inexorável da vida. Para quem, a observação da beleza, um simples gesto, uma singela palavra, ou mesmo um timido encetar de um diálogo não correspondido, podem ser motivo de alegria.

    Os contos da Daisy encerram sempre matéria de reflexão. Por isso acorro a relê-los sempre que me pretendo refugiar da superficialidade do nosso tempo...

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  3. "E só lhe doía a mão"...

    Forma inteligente e madura de dizer que lhe começavam a doer muitas mais coisas.
    Doía-lhe a distância do tempo que o separava da juventude, doía-lhe a impaciência dos velhos que o faziam reconhecer que ele próprio caminhava vertiginosamente para a velhice.
    E, numa espécie de fuga para a frente, aí está ele com um "Olá garota!", fingindo que a mão não lhe doía.
    Mas doía...

    Daisy, um beijo deste teu incondicional leitor, admirador e amigo certo.
    A propósito, quando é que sai o volume II dos teus contos?

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