terça-feira, 23 de agosto de 2011

TERNAS MEMÓRIAS ...

...ternas memórias ...

Era tempo de Primavera. Naquela noite, como todas as noites, a minha avó acompanhava-me ao quarto. Estava na hora de deitar. Curvada sobre si própria, amparava-se no corrimão de madeira, levando-me pela mão. Depois, a oração da noite, que me fazia soletrar: “… Pai nosso, que Estais no céu…”. Então, beijava-me na testa e saía. A enorme porta de madeira, rangia nos seus gonzos , fechando-se devagar. E eu ouvia os seus passos de veludo a afastarem-se, descendo a escada estreita. As manhãs, acordavam esplendorosas. Pela fresta da janela, eu via os raios de sol plasmados contra a parede branca do quarto, inundando-me de alegria. Saltava da cama e abria as portadas da janela larga. Lá em baixo, junto à porta da cozinha, estava o “Blego”. Era o meu cão. Expectante, abanando a cauda, aguardava o companheiro com quem corria à desfilada pelos campos do Mondego. Ladrava de impaciência, esperando a minha companhia. Uma espécie de reprimenda. E eu, desejoso de partir, clamava pela vinda da minha avó. Era um vestir rápido, passar a cara pela água fresca do jarro e um pente no cabelo de raspão. O pão que comia à pressa. E o leite saboroso, aquecido na cafeteira, em cima das brasas cor de rubi. Na hora da partida, sempre os conselhos da minha avó. “…Cuidado com o rio e com os poços…”- dizia-me, enquanto atiçava a lareira com um abanador, onde havia de confeccionar o almoço. Então, eu e o “Blego”, partíamos. Saltitante, de língua de fora e cauda no ar, o meu companheiro de aventura já sabia o itinerário. Lá íamos em direcção à ponte do velho Pama. O campesino, vivia na outra margem do rio. Por vezes, bem nos apetecia fazer-lhe uma visita de cortesia. Mas a minha avó, desde cedo me vedou as intenções. Tinha razão. A ponte era muito frágil e ameaçava a cada momento despenhar-se no rio. Mas, de longe, espreitávamos a sua humilde casa. Por vezes, via-nos, acenando ao neto do Mestre Pereira. O “Blego” respondia também ao cumprimento, ladrando. Depois a partida até à “Roda Doida”. Como era belo o seu lento rodar. E os alcatruzes da nora, subindo e descendo, naquele bailado amistoso, num abraço com o rio. Também o doce cantar do Mondego, afagando as suas margens, num perpétuo murmúrio. Mais longe, esbatida no horizonte, a silhueta duma barca. À ré, um homem que, com uma vara comprida, fazia deslizar a embarcação na travessia do rio. Num pulo, chegava a hora do almoço. Uma passagem junto dos trabalhadores da Mata, que, acantonados debaixo da sombra acolhedora, comiam da marmita, a sua frugal refeição. A tarde era gémea da manhã. E no fim do dia, quando o sol se escondia por entre os eucaliptais e a máquina a vapor partia da Estação Velha, lançando o seu silvo agudo que ecoava pela mata, perdendo-se nos confins da planície Mondeguina, regressávamos ao lar. Um último olhar ao céu, agora vestido de cor púrpura. E o vagaroso fechar da porta da cozinha, virada a poente. Amanhã, a certeza do regresso do sol acolhedor. O milagre do renascer da Natureza. E das madrugadas de cetim, naquela cumplicidade com o Choupal, que eu abraçava como meu. Com o “Blego” a meus pés, aguardando paciente a sua refeição, comia-se à volta da mesa de madeira, à luz do candeeiro a petróleo. Na lareira, o estalar dos ramos secos e o fumo subindo em espiral pela parede enegrecida da chaminé generosa. O crepitar saudoso dos meus verdes anos. Ternas memórias.
Q.P.

10 comentários:

  1. Terna "poesia"…!!!
    PARABÉNS Caro AMIGo.

    ResponderEliminar
  2. Não soubéssemos nós que o Choupal é parte integrante de Coimbra, não fosse o silvo do comboio a vapor a sair da estação, e podíamos perfeitamente imaginar-nos num bucólico recanto perdido nas serranias do Mondego, onde um rapaz e um cão viviam e brincavam despreocupados sob a atenção protectora de uma avó, longe, muito longe, da azáfama citadina.
    É este Choupal, tantas vezes cantado por poetas, que serviu de berço ao Quito, moldando-lhe para sempre o carácter e a sensibilidade às coisas boas que a Natureza nos oferece e que teimamos em não querer ver. Que teimamos em destruir.
    Tivesse Camilo vivido neste recanto paradisíaco que paulatinamente vai sendo abandonado, e invadido pelos ruídos do trânsito infrene que lhe passa por cima, e não descreveria melhor a ternura de uma infância feliz que o Quito nos transmite...

    ResponderEliminar
  3. O Choupal e o Quito o Quito e o Choupal!
    Para o Quito as recordações da sua meninice passam pela sua vivência na Mata do Choupal!
    É uma fase da vida em que nenhuma dessas recordações se perdem jamais!
    Sei também por experiência própria, que as imagens dos primeiros anos da nossa vida, estão sempre frescas e que ,por vezes nos damos conta, talvez inconscientemente, de as imagens passarem na nossa mente, como se um filme se tratasse!
    Quantas vezes dou por mim a recordar os meus primeiros anos de vida em Penela!!!
    São imagens em que recordo as feições dos meus amigos/as, das brincadeiras, do recreio da escola, das aventuras...
    Agora quando esses tempos passados são descritos em belos textos, com a arte de bem escrever, como o Quito nos brinda, até nós apenas como leitores conseguimos seguir todas essas imagens que nos transmite...com a vantagem de conhecermos bem o choupal!

    ResponderEliminar
  4. Obrigado Quito.
    Um Abraço.
    Tonito.

    ResponderEliminar
  5. Mais uma bela viagem que o Quito nos proporciona, transportando-nos até às suas mais ternas memórias de infância e dando-nos a conhecer o Choupal que poucos terão conhecido.
    O afecto que todos nós, quase todos, temos pelo Choupal é um sentimento ligeiro se comparado com este amor profundo de quem nele revê o seu berço.
    Pincelada após pincelada, o quadro vai aparecendo aos nossos olhos e o Choupal, que não conheci, desenha-se à minha frente como se o tivesse conhecido.
    Como se o tivesse conhecido no tempo em que o "Blego" saltitava pela Mata...

    ResponderEliminar
  6. Da forma que está escrito este texto podia bem ser um belo ponto de partida para um livro com contos de aventuras. :) Senti-me transportado para dentro do nosso Choupal onde também gosto de me perder e de me encontrar ...

    Por acaso chegaste alguma vez a tirar fotos ao Blego? Não me recordo de ter visto ...

    ResponderEliminar
  7. Sim, Gonçalo, tenho uma foto com o "blego".
    Estará lá em casa no albúm ...

    ResponderEliminar
  8. É uma história intimista da memória sempre viva do Quito que nos transporta para as vivências românticas, doces mas ao mesmo tempo amargas, dum passado que ainda se encontra muito próximo nas recordações de muitos de nós.

    ResponderEliminar
  9. Por mais palavras que tenha, nunca esta forma de prozar me afasta da vontade de a "saborear", palavra a palavra, reconhecendo-se imediatamente que se trata de mais uma bela história, superiormente contada pelo meu amigo Quito.
    Abraço
    Henrique

    ResponderEliminar
  10. Ler as memórias do Quito é sempre delicioso!
    Hoje tocou-me, principalmente a ternura da avó. Gostaria de ser um dia recordada como uma avó, igualzinha à tua.

    ResponderEliminar