quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A SINFONIA DA MONTANHA ...

a sinfonia da montanha ...


É domingo. Um dia pasmado de silêncio, no recorte nítido das cordilheiras. No meu velho carro, vou percorrendo as curvas de um Tempo que me parece infinito. Sinto-me como num carrossel, em lento rodopiar, sem paragem e sem destino. Passada a povoação da Lameirinha e um pouco mais à frente, uma estrada estreita empurra-me para o interior da montanha. Expectante, avanço cauteloso ao encontro de lugarejos singelos, de vasos floridos à janela. Depois, o casario espraia-se pelo ventre de um vale forrado de terra castanha de cultivo. Estamos em Almaceda, com o seu parque de merendas debruçado sobre um caudal de águas frias. Algumas crianças, desnudadas, vão combatendo o calor, lançando-se à ribeira em grande algazarra. Os seus gritos exultantes, são como farpas aguçadas, ferindo o marasmo da aldeia. Aqui e ali, sentados a coberto da canícula, alguns idosos olham-me com curiosidade e desconfiança. Ao lado, a velha bengala, companheira do inverno da vida. Também o Café do povoado, parece perdido na penumbra do esquecimento. Um relógio na parede, marca as horas que não existem. É o ritmo compassado do campanário, que vai gerindo o ritmo da vida. O seu troar estridente, marca o ritual das refeições e do terço, rezado com a fé de quem dela precisou toda a parda existência de labuta e de privações. Mas ainda não é ali que termina o mundo. Ingrenal, habita o dia e a noite dos tempos esquecidos. Trepa-se a montanha, por uma estreita estrada alcatroada. Do seu lado direito, a via debruça-se sobre um abismo pavoroso, que me ameaça a vida sem piedade. São sete quilómetros a subir, ao encontro do céu. E, lá no cimo - no cimo do cabeço - um oásis de paz. Algumas casas caiadas, contrastam com o casario mais soturno. Neste ou naquele telhado, uma chaminé mais trabalhada. É afirmação material dos que partiram um dia para outras paragens, na busca do sonho. Agora que regressaram ao ninho materno, a bandeira do triunfo, na bagagem as ideias importadas. A paisagem circundante, é lúgubre. No descarnado da montanha, apenas as pás gigantescas das turbinas eólicas, são sentinelas fiéis daquele clamor de silêncio. O assobiar do vento por entre o empedrado das ruas estreitas e austeras da dureza do granito, é o bater telúrico de um coração no auge da solidão. Também aqui podia morar o vento galego dos Contos de Torga. Aquela mulher de negro, com a cabeça vestida de prata das agruras sofridas, em que repousa um balde assente numa rodilha, bem poderia chamar-se Maria Lionça. Aquela heroína, que um dia se despediu de Galafura e da vida, perante o jorrar das lágrimas de uma aldeia. Ali, ao olhar aquela mulher de aspeto frágil, recordo o escritor e o seu caudal de afetos, escondidos por detrás de um semblante austero. Enquanto aos meus ouvidos, de botas - cardadas, o vento uiva em sofrido murmúrio e me fustiga o rosto. São os acordes solenes da sinfonia da montanha.
Q.P.

11 comentários:

  1. As pás gigantescas das turbinas eólicas, como sentinelas...
    E eu acrescentaria, como testemunhas...
    Testemunhas dum mundo perdido no tempo e nas serranias, desconhecido dos citadinos, onde moram dramas que não imaginamos.
    Ou que preferimos não imaginar. Mas que a sensibilidade do Quito nos traz, obrigando-nos a despir a capa do comodismo e da indiferença, como só ele sabe fazer.
    A associação daquela mulher de negro, ajoujada aos anos de uma vida de sofrimento, com a Maria Lionça de Miguel Torga reforça as agruras do ambiente serrano.
    Tivesse Torga vivido na Beira Baixa, tivesse ele calcorreado as aldeias que servem de cenário ao Quito, e o emocionante drama da Maria Lionça e do filho morto de doença fatal, poderia ter sido escrito de forma não diferente daquela que o Quito usa, com idênticos vocábulos, com maestria semelhante.
    Só não pintaria o cenário com as pás eólicas, porque as não chegou a conhecer. Ou, conhecendo-as, porque haveria de as considerar um atentado às paisagens rurais, mau grado a vertente ambiental que as justificam...
    Para mim, este é um dos textos mais pungentes e melhor escritos daqueles que conheço do Quito.

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  2. Este texto não é prosa, é autêntica poesia!
    O Quito no seu melhor. Consegue ver e descrever pessoas, situações e coisas que a qualquer um de nós passaria despercebido e só depois de o ler, é que nos apercebemos da importância de tudo isso!

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  3. Belo texto que por sua vez permite que o Rui Felício o aborde com uma análise que é outro belo texto e que nos permite realçar ainda mais o grande nível da escrita do Quito!
    Gostei imenso concordando que é um dos melhores textos que o Quito escreveu!

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  4. O Quito conta-nos em imagens de rara beleza a agrura de gente simples num relato cinematográfico que nos transporta para aquela realidade bela e agreste.
    Parabéns
    Abílio

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  5. Gostei muito, mais uma vez.
    Parabéns Quito !

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  6. Mais uma prosa carregada de poesia.
    Quito, no seu maior.
    Obrigado.
    Abraço

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  7. Eu, tão dura de ouvido, consegui vibrar com a " Sinfonia da montanha"!

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  8. Muito poético!Gostei muito.
    Parabéns, Quito.

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  9. Fiquei esmagado ...

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