a sinfonia da montanha ...É domingo. Um dia pasmado de silêncio, no recorte nítido das cordilheiras. No meu velho carro, vou percorrendo as curvas de um Tempo que me parece infinito. Sinto-me como num carrossel, em lento rodopiar, sem paragem e sem destino. Passada a povoação da Lameirinha e um pouco mais à frente, uma estrada estreita empurra-me para o interior da montanha. Expectante, avanço cauteloso ao encontro de lugarejos singelos, de vasos floridos à janela. Depois, o casario espraia-se pelo ventre de um vale forrado de terra castanha de cultivo. Estamos em Almaceda, com o seu parque de merendas debruçado sobre um caudal de águas frias. Algumas crianças, desnudadas, vão combatendo o calor, lançando-se à ribeira em grande algazarra. Os seus gritos exultantes, são como farpas aguçadas, ferindo o marasmo da aldeia. Aqui e ali, sentados a coberto da canícula, alguns idosos olham-me com curiosidade e desconfiança. Ao lado, a velha bengala, companheira do inverno da vida. Também o Café do povoado, parece perdido na penumbra do esquecimento. Um relógio na parede, marca as horas que não existem. É o ritmo compassado do campanário, que vai gerindo o ritmo da vida. O seu troar estridente, marca o ritual das refeições e do terço, rezado com a fé de quem dela precisou toda a parda existência de labuta e de privações. Mas ainda não é ali que termina o mundo. Ingrenal, habita o dia e a noite dos tempos esquecidos. Trepa-se a montanha, por uma estreita estrada alcatroada. Do seu lado direito, a via debruça-se sobre um abismo pavoroso, que me ameaça a vida sem piedade. São sete quilómetros a subir, ao encontro do céu. E, lá no cimo - no cimo do cabeço - um oásis de paz. Algumas casas caiadas, contrastam com o casario mais soturno. Neste ou naquele telhado, uma chaminé mais trabalhada. É afirmação material dos que partiram um dia para outras paragens, na busca do sonho. Agora que regressaram ao ninho materno, a bandeira do triunfo, na bagagem as ideias importadas. A paisagem circundante, é lúgubre. No descarnado da montanha, apenas as pás gigantescas das turbinas eólicas, são sentinelas fiéis daquele clamor de silêncio. O assobiar do vento por entre o empedrado das ruas estreitas e austeras da dureza do granito, é o bater telúrico de um coração no auge da solidão. Também aqui podia morar o vento galego dos Contos de Torga. Aquela mulher de negro, com a cabeça vestida de prata das agruras sofridas, em que repousa um balde assente numa rodilha, bem poderia chamar-se Maria Lionça. Aquela heroína, que um dia se despediu de Galafura e da vida, perante o jorrar das lágrimas de uma aldeia. Ali, ao olhar aquela mulher de aspeto frágil, recordo o escritor e o seu caudal de afetos, escondidos por detrás de um semblante austero. Enquanto aos meus ouvidos, de botas - cardadas, o vento uiva em sofrido murmúrio e me fustiga o rosto. São os acordes solenes da sinfonia da montanha.
Q.P.
Q.P.
As pás gigantescas das turbinas eólicas, como sentinelas...
ResponderEliminarE eu acrescentaria, como testemunhas...
Testemunhas dum mundo perdido no tempo e nas serranias, desconhecido dos citadinos, onde moram dramas que não imaginamos.
Ou que preferimos não imaginar. Mas que a sensibilidade do Quito nos traz, obrigando-nos a despir a capa do comodismo e da indiferença, como só ele sabe fazer.
A associação daquela mulher de negro, ajoujada aos anos de uma vida de sofrimento, com a Maria Lionça de Miguel Torga reforça as agruras do ambiente serrano.
Tivesse Torga vivido na Beira Baixa, tivesse ele calcorreado as aldeias que servem de cenário ao Quito, e o emocionante drama da Maria Lionça e do filho morto de doença fatal, poderia ter sido escrito de forma não diferente daquela que o Quito usa, com idênticos vocábulos, com maestria semelhante.
Só não pintaria o cenário com as pás eólicas, porque as não chegou a conhecer. Ou, conhecendo-as, porque haveria de as considerar um atentado às paisagens rurais, mau grado a vertente ambiental que as justificam...
Para mim, este é um dos textos mais pungentes e melhor escritos daqueles que conheço do Quito.
Este texto não é prosa, é autêntica poesia!
ResponderEliminarO Quito no seu melhor. Consegue ver e descrever pessoas, situações e coisas que a qualquer um de nós passaria despercebido e só depois de o ler, é que nos apercebemos da importância de tudo isso!
Obrigada QUITO.
ResponderEliminarUM Abraço.
Tonito.
Belo texto que por sua vez permite que o Rui Felício o aborde com uma análise que é outro belo texto e que nos permite realçar ainda mais o grande nível da escrita do Quito!
ResponderEliminarGostei imenso concordando que é um dos melhores textos que o Quito escreveu!
O Quito conta-nos em imagens de rara beleza a agrura de gente simples num relato cinematográfico que nos transporta para aquela realidade bela e agreste.
ResponderEliminarParabéns
Abílio
Gostei muito, mais uma vez.
ResponderEliminarParabéns Quito !
Continuas em forma , Quito!
ResponderEliminarMais uma prosa carregada de poesia.
ResponderEliminarQuito, no seu maior.
Obrigado.
Abraço
Eu, tão dura de ouvido, consegui vibrar com a " Sinfonia da montanha"!
ResponderEliminarMuito poético!Gostei muito.
ResponderEliminarParabéns, Quito.
Fiquei esmagado ...
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