domingo, 15 de janeiro de 2012

À SOMBRA DA LEI






"A lei deve ser breve para que os indoutos possam compreendê-la facilmente."
Séneca


A propósito desta citação de Séneca, conto uma situação, infelizmente tão corrente desde sempre nas relações entre o cidadão e alguns agentes do Estado.

O Francisco Viegas, dono de uma pequena mercearia de bairro, foi visitado pela Inspecção das Actividades Económicas que, depois de breve vistoria, lhe apreendeu diversa mercadoria. Não porque estivesse em mau estado sanitário, mas porque, no estabelecimento, ele não tinha as facturas justificativas da sua compra.
- Mandei-as para o guarda-livros, Sr. Inspector!
- Pois é, já sabemos de cor e salteado essa conversa.
- Mas podem lá ir que ele mostra-as! O escritório dele é aqui perto…
- O que a lei diz é que tem que as ter aqui para mostrar à Fiscalização sempre que forem pedidas!
O Francisco Viegas coçava a cabeça, insistia que fossem lá ao escritório do contabilista, mas o Inspector mostrava-se irredutivel.
- E agora?
- Agora vamos ter que lhe levantar um auto e lançar uma coima. Para além da mercadoria que temos que apreender.
E o Inspector, zeloso servidor do Estado, rapou dos códigos, folheou-os e exibiu-lhe as disposições legais ao abrigo das quais o iria autuar:

Nos termos do artº 16º alinea b), do DL 1271/86 de 20 de Novembro, que rectifica a alinea c) do artº 12ª do DL 12/78, que revogou o DR 49234 de 17 de Janeiro de 1968, o agente comercial que não fizer prova instantânea, sempre que lhe for exigida, da origem e facturação dos produtos que comercializa no seu estabelecimento, será punido com coima definida na alinea d) do artº 433º do Regulamento das Contra-Ordenações publicado em 13 de Fevereiro de 1987, sendo-lhe apreendida a mercadoria de que não justifique a proveniência”.

E a alinea c) do mesmo artº 16º do citado diploma legal, foi ainda mencionada pelo Agente:

Se se provar ter existido dolo, o agente comercial incorre também em procedimento criminal, na parte adequada das disposições do Código Penal, por presuntivamente ter receptado mercadoria furtada.”

- Quer dizer que, além da multa e de me levarem a mercadoria, ainda posso ser preso?!! Oh Sr Inspector, não me desgrace a vida, que eu não percebo nada dessas leis que me está a mostrar.
- A ignorância da lei não aproveita. Você é que sabe homem! Faça contas à sua vida. Eu estou aberto a uma solução para o seu problema. Você, com metade da coima, paga agora, pode ficar com a mercadoria e livrar-se de chatices…
- E o auto? Vai levantar o auto?
- Já me viu escrever alguma coisa, homem?

Rui Felicio

14 comentários:

  1. Não vale a pena tapar o sol com a peneira. Esta ficção, bem poderia ser uma realidade. Não é novidade para ninguém, a forma como,por vezes, se tenta extorquir dinheiro, em quantias significativas, às vitimas ( porque é de vitimas que estamos a falar). São conhecidas, há tempos atrás, as aposentações compulsivas e até de prisão a elementos das Brigadas de Trânsito, por enriquecimemto que não se coadunava com os seus relativos modestos ordenados.
    Recordo aquele Sargento da GNR, condenado a vários anos de prisão e que dizia ao juiz, fora de si " mas sou só eu ???".
    Geralmente, dizia-se ao automobilista: a multa é "X" mas o senhor condutor é que sabe ...

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  2. Da citação de Séneca, passando por um pequeno comerciante de bairro, chega-se à figura central desta história.
    A corrupção passiva era quase uma instituição nacional. Digo que era, de uma forma optimista, na esperança de que já não o seja.
    Mas não queiramos ignorar o óbvio. A passiva só podia existir de mãos dadas com a activa...
    A corrupção activa também estava registada, quase geneticamente, no comerciante português.
    Estou mesmo a imaginar o nosso amigo Francisco Viegas, enquanto ouvia o enunciado do DL 1271/86, e consciente de que tinha mercadoria na sua mercearia que não estava facturada, a pensar com os seus botões: " Está bem, está bem... Qual metade da coima qual... Vais levar um bacalhau e dois quilos de chouriço e já vais cheio de sorte..."
    Era assim.
    Será que ainda é assim?
    Aqui fica a pergunta para quem souber responder.

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  3. Desta feita, o conto de Rui Felício não tem um final imprevisível.
    Imprevisível é, contudo, a subtileza com que o fiscal propõe o suborno...

    Aquele abraço.

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  4. Conheço alguns episódios com este tema relacionados, mas veio-me à memória umas cenas que se passaram comigo! Estava a trabalhar numa empresa de Aveiro, vinha do Porto e numa recta sem qualquer perigo, pisei um traço contínuo. Os GNR,s à caça, mandaram-me parar e...blá, blá, blá, começou a escrever e eu ia respondendo: Nome?... idade?... profissão? engenheiro! Parou de escrever e disse: Ó Sr. Engenheiro, podia ter dito, eu já comecei a escrever, agora não posso rasgar o papel, mas vou-lhe passar só uma multa de falta de triângulo que é coisa pouca e não fica sem a carta nem vai a tribunal!... Muito obrigado Sr. Guarda. Segui viagem e pensava ter aprendido a lição!
    Talvez um mês depois, perto de Águeda, cansado de ir atrás de uma camioneta, também numa recta mas com traço contínuo, resolvi ultrapassar. Novamente, uma Brigada escondida em lugar estratégico, me manda parar! O mesmo blá, blá, o Sr. sabe o que fêz?... Antes que ele começasse a escrever, disse-lhe: Ó Sr. Guarda, eu venho do trabalho, sou Engenheiro... não me deixou acabar!... Ai é Engenheiro? então não tenho pena nenhuma, pode pagar bem uma multa!...
    Fiquei sem fala, paguei e não foi pouco!

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    1. Pagaste e não bufaste...
      Quem te manda a ti, engenheiro, armar em carapau de corrida!?

      Juro-te que me fartei de rir com esta tua história.
      Abraço.

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    2. Só mais uma pequena nota:
      Nunca mais digas que não tens jeito para escrever.

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    3. Corroboro inteiramente o comentário do Carlos Viana a propósito da escrita do Alfredo.

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  5. A mim, aconteceu mais do que uma vez tentarem-me sobornar! Era quando chamáva-mos os familiares de um idoso comunicando-lhes que o doente iria ter alta; eles reagiam...porque não tinham condições, como é que iam fazer com o "velho"... pediam-me delicadamente que ficasse mais uns tempos internado... eu dizia que não e...em desespero de causa, mostravam-me uma "nota"...ou perguntavam-me quanto é que eu queria...
    Era complicado! eu fiquei sempre sem saber como é que lhes deveria responder sem sinais de cólera!

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  6. Este depoimento do Rui Pato, impressionou-me. Na verdade, oferecer dinheiro para que o idoso ficasse internado, não lembra ao diabo.
    Porém, o problema é bem mais profundo. Há o outro lado da moeda, com os familiares desesperados, sem condições para albergar os seus idosos ou a deixa-los todo o dia sozinhos, por terem que ir trabalhar, com os preços especulativos que muitos lares praticam, valendo-se das dificuldades das pessoas. E mesmo assim, por vezes, só essa instituição nacional a que se chama "cunha", resolve o problema, com as pessoas quase a mendigar um lugar para um familiar.
    Todos os dias, vou a dois lares em Salgueiro. Conheço bem os dramas da fase terminal da vida. Essa experiência diária de tantos anos, ensinou-me a relativizar tudo. Ensinou-me em como tudo é efémero, pelo que todo este cortejo de corrupção e de ganância, me faz meditar e lamentar. Porque, felizmente e na esmagadora maioria de nosso povo, há outras formas de caminhar pela vida. Com a dignidade de saber contornar dificuldades, sem ter que se valer de um estatuto ou de uma farda, para despudoradamente se meter as mãos nos bolsos de quem, na esmagadora maioria das vezes, vai ganhando a vida com muito sacrifício ...
    Um abraço a todos

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  7. Todos conhecemos e sabemos que este espírito de influências foram, são e, provavelmente, continuarão a ser!

    Na minha vida profissional, muitas foram as ocasiões em que me queriam " oferecer" uma prenda para que o aluno passasse...

    Outros, e foram a maior parte, me mimaram com uma lembrança que eu estimo e guardo com muito carinho!

    O episódio que o Rui Felício tão bem refere, deve sempre manter-nos atentos.

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  8. É um texto que através dos tempos está sempre aCtualizado!
    E por vezes as situações são mais embaraçosas!
    -Obrigado caro amigo!
    O seu empurrão foi muito proveitoso!!!
    Ainda bem...mas não fiz nada de especial!
    -Digo eu...pois não!
    - Nunca mais me lembrei do "pedido"!!!
    -Deve ter sido por isso...que deu certo!!
    -Hoje ainda tem emprego, é casado, tem filhos e vive FELIZ!
    -à custa de um "PEDIDO" que ficou esquecido!

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  9. As necessidades e os brandos costumes estimularam a existência da cunha, do pequeno suborno a que alguns se agarram como náufrago à tábua de salvação.
    Depois, há os outros, os grandes senhores, ditos incorruptiveis, acima de toda a suspeita, e que, por isso, têm as portas abertas à grande corrupção e falcatrua.
    Felício, deste um bom retrato do Portugal de ontem e, infelizmente, de hoje...

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  10. É um facto que a pequena corrupção é de todos os tempos e poucos haverá que não conheçam casos elucidativos. Porque, como diz o Abílio, as necessidades a isso conduzem.

    As leis que as reprimem, são teoricamente iguais para todos. Para os pequenos e para os grandes corruptos.

    Mas só teoricamente, porque a dimensão da grande corrupção justifica a exploração e aproveitamento das ambiguidades legais no sentido da sua ocultação e absolvição.

    Sendo que esse aproveitamento só está ao alcance dos grandes, com meios suficientes para a eternização processual judicial até à sua prescrição final.

    E não é por acaso que o hermetismo, a complexidade, a ambiguidade e as equivocas redacções dos normativos legais o facilitam. Porque são esses mesmos grandes que colaboram ou influenciam a feitura e o teor
    das leis...

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