EU, o guarda-chuva
E o espectador da bancada
Ano de 1936. O vetusto e exíguo campo de
Santa Cruz, ali no paradisíaco Parque da Sereia, era, todas as tardes, “democraticamente”
retalhado em várias parcelas, nas quais dezenas e dezenas de equipas, compostas
por miudagem liceal, disputavam intermináveis encontros de futebol, com bolas
já tortuosas e cosidas alugadas ao Sô Zé (guarda do campo) e de equipamentos
mais dispares, mas, quase sempre, com as próprias cuecas, camisolas interiores
e sapatos normais.
As balizas, profusamente fixadas aqui e
ali e correspondendo aos múltiplos e distintos grupos, eram formados com as
capas e batinas enroladas, com os livros ou tudo o que pudesse servir de postes
a delinear a área dos guarda-redes.
Enfim, uma autêntica barafunda em que,
todavia, toda aquela rapaziada de verdes anos se entendia e não confundia,
embora as inúmeras bolas e dezenas de intervenientes de cada uma das diferentes
equipas, em veloz e simultâneo movimento, continuamente se entrechocassem
durante o ardor da disputa dos lances de ataque e defesa.
Eu, então com os meus quinze anos, também
fazia parte integrante e diária duma dessas aguerridas equipas. E quantas e
quantas cuecas e camisolas interiores rasguei e quantos sapatos esmurrei…!
Mas, era ali, no velhinho Campo de Santa
Cruz, o mais válido e produtivo centro de recrutamento de futuros jogadores da
BRIOSA desse tempo, onde os responsáveis do futebol académico iam observar e “pescar”
os jovens mais habilidosos, a fim de, principalmente, passarem a constituir as
equipas de juniores e das categorias secundárias, com possibilidades de chegarem
a titulares, como aconteceu com alguns deles.
Tive a sorte de ser um desses moços, “pescados”,
iniciando-se, assim, a minha longa vida desportista de que guardo as mais
gratas recordações.
Durante doze anos enverguei a camisola
negra da BRIOSA. De 1936 a 1942 e de 1949 a 1956, sempre em voluntário e puro
amadorismo, apesar de componente da equipa principal e incondicionalmente
imbuído daquela “mística” que, por razões sentimentais e de vária ordem,
qualquer outro clube não transmite aos seus atletas.
Anos volvidos, pedem-me para reviver um episódio
pitoresco passado na minha vida desportiva no mundo do futebol. Foram tantos,
tantos e alguns deveras rocambolescos que, desta feita, limitar-me-ei a
recordar um, passado 3m 1951, no Campo da Tapadinha, quando dum jogo contra o
forte Atlético de então.
Era um desafio importante para as duas
equipas, ambas inteiramente com necessidade de vencer.
Tarde invernosa. Claque da BRIOSA, inúmera
naquele tempo, emoldurando um dos lados do rectângulo com mar de capas negras a
esvoaçar e incentivo e entusiásticos ÉFE-ÉRRE-ÁS. Do outro lado do recinto,
sobretudo, nas bancadas mesmo sobranceiras à linha lateral, a claque de apoio
do Atlético, não menos barulhenta e numerosa. Enfim, campo cheio a abarrotar.
Tempo muito chuvoso e muitos guarda-chuvas…
O jogo ia decorrendo com domínio
alternado. A certa altura, o ponta esquerda dos alcantarenses isolou-se, com
muito perigo, correndo isolado em direcção às nossas redes guardadas pelo
Capela. A marcação do golo era iminente. Estávamos a vencer por dois a um e o
empate não convinha nada aos objectivos
da BRIOSA.
Face à rapidíssima e perigosa investida do
adversário, não pensei duas vezes. Numa entrada mais dura, mas eficaz, choquei
com o “fugitivo”, derrubando-o e pontapeando a bola para bem longe.
Quase acto contínuo, caiu um guarda-chuva
junto de mim, agressivamente arremessado, das bancadas, por um ferrenho adepto
do Atlético.
Com uma calma exuberante, apanhei o
guarda-chuva e dirigi-me, solícito, ao sector das bancadas de onde fora
intencionalmente atirado, perguntando muito delicadamente:
- Por favor, de quem é este guarda-chuva?
Sem dúvida, surpreendido com a minha
solicitude, um dos espectadores levantou-se e confessou em voz um tanto tímida e, também, delicadamente:
- É meu…
- Ah, é!., retorqui de pronto.
E, simultaneamente, quebrei o agressivo
guarda-chuva, ao meio, com a minha coxa, atirando-o de seguida, todo
esfrangalhado, ao legítimo proprietário que, como é de calcular, me cumulou com
os maiores insultos, em coro com os demais adeptos alcantarenses, numa
barulheira infernal, perante o meu sorriso malandreco.
No final do encontro, recolhi aos balneários
rodeado por um filão de polícias a salvaguardar a minha integridade física.
Mas, valeu a pena. A nossa BRIOSA ganhou
por dois a um!
Enfim, coisas do futebol de outras eras de
que retenho um manancial de saudosas e gratíssimas recordações.
Uma primeira crónica AQUI
Complemento em fotos de EG
Campo de Santa Cruz em 1936
Benfica 1 AAC 1 em 6-11-1949 Capela em acção
Curado com a garra que o caracterizava
Fotos do livro:Académica-História do Futebol