Quantas memórias ...
Entrei na pastelaria da Ermelinda e encostei-me à montra dos
bolos. Bolos apelativos de sabores diversos, ou não fosse aquele dia o início
da Feira de “Arte e Doce”, a que concorrem muitos profissionais do ramo da
doçaria da região. Percorri o pequeno estabelecimento com os olhos e, numa mesa
encostada a um canto, vi um homem.
Impressionou-me o seu ar cansado, o cabelo
grisalho um pouco em desalinho e a camisola negra que lhe dava um ar ainda mais
carregado. Aquela cara não me era estranha, até que a Ermelinda me avivou a
memória - era o Trajano. Sim, o Trajano, nome invulgar e também nome de
imperador romano.
Estava desgastado. Um semblante muito diferente de épocas
recuadas, quando a cidade vivia ainda apertada entre muralhas. Foi através da sua
irmã, que travámos conhecimento. Não demorou a reconhecer-me, depois de uns
segundos em que me fixou nos olhos e o seu pensamento voou sobre o passado. Num
ápice, tínhamos duas cervejas em cima da mesa.
Falou das vicissitudes da vida, de Lisboa para onde partiu,
da casa dos pais que era mesmo em frente à pastelaria e que continua bem
conservada e pintada de branco. Falou dos filhos e dos netos . Também falou de
saudade.
Disse-me que não estava ali por acaso. Tinha combinado
encontrar-se naquele local com dois amigos da sua infância lacobrigense, que já
não via há mais de meio século.
Minutos depois, apareceu o primeiro. Vinha alegre e entusiasmado com o reencontro. Já tinha dobrado a idade de sessenta e cinco anos que não aparentava, ao invés do Trajano. Depois apareceu o outro. Era um homem forte, de andar pesado suportado por uma bengala em madeira, uma cara nutrida e rosada, de onde sobressaiam uns óculos de armações grossas.
A conversa animou. Era previsível. E eu, cedo percebi ser uma
carta fora do baralho naquele cadinho de sentimentos e emoções em ebulição. Mas
a marcha das recordações em catadupa, mostrava à evidência uma infância pobre,
cheia de dificuldades e limitações. Não falaram em bolas de trapos, nem no jogo
do pião.
Porém, naquele empolgante dialogar, a conversa invariavelmente
desaguava no mar. O mar que foi o seu berço. A sua realidade de infância e
juventude. A sua referência. Para dois deles, o ganha- pão dos pais, que no fim
de cada tarde dobravam a barra de Lagos na traineira e pernoitavam no balanço
do mar.
Despedi-me e parti. Afinal que interessava partilhar com eles
a minha infância de triciclos, de papagaios de papel de cauda ao vento no
“Cavalo Selvagem”, de jogos de bola e das correrias angustiantes à frente da
polícia?. Nada, direi eu …
Enquanto no braseiro do parque de estacionamento, eu batia
com a porta do carro para me pôr em marcha, meditei naquele momento de um
jorrar de memórias doces daquele trio algarvio e uma pergunta acudiu ao meu
pensamento. Com triciclos e papagaios de papel, teria tido eu uma infância mais
feliz?
Respondi, convicto, à minha própria inquietação: não.
Quito Pereira
Muito bem, caro Quito! Já tinha saudades da tua "poesia"!!!!Grande abraço.
ResponderEliminarO que os amigos do teu amigo te fizeram pensar. Uma realidade que por vezes é chocante e nos faz meditar. Esse "não" faz tremer o coração.
ResponderEliminarHá cerca de dois anos uma equipa de dentistas foi durante as férias ajudar crianças no México, vinham admirados como elas sem nada se riam e eram felizes. Dois mundos, duas mentalidades.
Gostei do texto, Quito.
ResponderEliminarLembrei-me da minha infância. Um dia falamos sobre isso. Abraço e boas férias.
Caro Alfredo
ResponderEliminarEstou por cá por uns dias e espero que nos encontremos domingo. Como há dias me falaste no leitão da Mealhada no "Típico", fica a sugestão na esperança que o grupo concorde ...
Abraço
Mas marcar muito cedo a MESA!!!
EliminarLagos o seu mar e as suas gentes estão sempre patentes nos tesxtos que escreves de Lagos.
ResponderEliminarSem dúvida que os tempos de infância tem muito a ver com os costumes das terras onde se nasce. Mas as recordações, essas são sempre vividas ao longo da vida com alegria e com uma saudade que não tem a ver com a condição económica da familia. São as amizades que prevalecem com aqueles com que partilhamos a nossa infância!
Bom texto como sempre
Caríssimo Quito!
ResponderEliminarQuando te leio, não raro recorro a um dicionário, posto que alguns vocabulários são mais comuns ao Português europeu, a exemplo de "lacobrigense", pessoa natural da cidade de Lagos. E, com isso, insaciável por histórias, tu me remetes a pesquisar sobre essa Cidade.
Descubro, que "A primeira localidade na região de Lagos, chamada de Laccobriga ou Lacóbriga, foi fundada cerca de 2000 anos antes do Nascimento de Cristo pelos cónios. Foi subsequentemente ocupada por Cartagineses, Romanos, povos bárbaros, muçulmanos e finalmente reconquistada pelos cristãos no Século XIII." Quanta riqueza de informações... e tudo... por conta de O Reencontro!
Independente de como tenha sido a infância de um ou de outro, é oportuno mencionar a letra de uma determinada canção, que costumamos cantar, aqui na Empresa, quando algum colega é transferido para outra Unidade, ou mesmo quando se aposenta, que retrata o sentimento de Amizade:
"Amigo é coisa para se guardar/Do lado esquerdo do peito/Dentro do coração/Assim falava a canção/Que na América ouvi/E quem cantava chorou/Ao ver seu amigo partir/Mas quem ficou, no pensamento voou/
Com seu canto que o outro lembrou/E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou..."
(Canção da América, de Milton Nascimento).
Grata, Quito.
A Canção do Milton Nascimento é belíssima.
EliminarNão é?
EliminarLindíssima...Canção da América/Milton Nascimento
EliminarGrato estou eu, pois com o texto também aprendi alguma coisa de Lacobriga, graças à pesquisa interessada que vem do outro lado do mar sobre esta cidade, tão ligada à epopeia dos Descobrimentos ou Achamentos segundo alguns.
ResponderEliminarUm Abraço "Chama a Mamãe"
Outro abraço.
EliminarChama a Mamãe!
ResponderEliminarO Quito voltou e deixa-nos sempre encantados com os seus textos.
Estamos do mesmo lado do oceano só que nasci do outro lado e gosto muito de conhecer e dar a conhecer o pouco que sei. São intercâmbios extraordinários que nos enriquecem. Só que não estava à espera que com uma simples palavra tivesse tido uma lição de história de Portugal e seus antecedentes da sua parta. Por vezes como sabemos do que se trata, somos preguiçosos e nem temos o cuidado de ir procurar.
Este é um dos factores que torna este blogue muito rico.
Que maravilha a sua atitude de partilhar. Bem haja.
Portugal é antigo e, por isso, tem muita História. Eu nunca me canso de saber um pouco mais.
EliminarComo sempre, maravilha de texto.
ResponderEliminarAbraços a todos e beijos a todas...com todo o respeito, claro!
ResponderEliminarUma BOA NOITE!
Ao ler o texto do Quito também eu me interrogue se me deveria intrometer na conversa, pois nem mar, nem triciclos, nem papagaios de papel são vivências da minha infância.
ResponderEliminarCada um terá as suas memórias, todas diferentes, mais ou menos felizes mas sempre serão as nossas!
A conversa luso/ americana foi enriquecedora e maravilhosa.
Voltem sempre, meus amigos.