É o silvo estridente da máquina do comboio a carvão, a partir
da Estação Velha rumo ao povoado de Alfarelos, que clama por mim. É o regresso
ao passado. Ao meu passado. Por minutos, resguardo por entre os dedos a
fotografia do meu avô, amarelada pelos anos, naquela década distante.
Sinto-me trespassado de saudade. A esta distância, ainda
tenho nos ouvidos, o cantar do rio e o gemer dos alcatruzes da “Roda Doida”. O
ladrar do “Blego” e a sua correria pelos
campos do Mondego. O trinar dos pássaros por entre as árvores vetustas de porte
soturno, sentinelas fieis da Mata e do Tempo.
Olho a fotografia e localizo - a no espaço. Aquele é o meu
Choupal. Ali, com a ponte de caminho – de - ferro no horizonte e o comboio do
meu encantamento a galgar carris, numa marcha fumegante e triunfal, recordo o
velho Pama.
O Pama era o barqueiro e o rio o seu sustento, quando, na
margem esquerda, junto à porta da sua velha cabana, cobrava algumas moedas do
magro pecúlio, a todos os que demandavam a Mata Nacional, para trabalhar à
jorna. Tempos difíceis. Tempos de miséria.
O Adelino, usava uns velhos socos no verão e no inverno, sem o luxo de poder comprar um par de meias. Quando, ao almoço, se refugiava debaixo de uma árvore, já se sabia que não trazia merenda e era a avó Maria José, sempre vigilante, que percebia o drama e ia para a cozinha preparar uma singela refeição, para lhe oferecer.
O Adelino, usava uns velhos socos no verão e no inverno, sem o luxo de poder comprar um par de meias. Quando, ao almoço, se refugiava debaixo de uma árvore, já se sabia que não trazia merenda e era a avó Maria José, sempre vigilante, que percebia o drama e ia para a cozinha preparar uma singela refeição, para lhe oferecer.
Recordo o Pama e a sua barba rala, numa cara magra e pálida.
Com arte e sacrifício, construiu uma ponte - pedonal, em estacaria.
Atravessá-la, era uma aventura. A ponte, de frágil estrutura, dançava ao sabor
da corrente e o Mondego, quando estava de mau humor, ameaçava engolir os
passantes. Por vezes, tinha que se proceder a reparações, nos suportes de
madeira de eucalipto e era aí que entrava o barco negro, que o Pama manejava
com uma vara e muita destreza. Havia como que um pacto surdo com a corrente do
rio, que fazia a embarcação chegar à outra margem, sem grandes balanços e
aflições. Os trabalhadores, ocupavam os seus lugares e, serenos, confiavam nos
braços firmes do barqueiro, para os levar a bom porto.
Na minha mente, desfilam, em catadupa, aqueles poentes
incendiados, misturados com o cheiro dos carvalhos, plátanos e eucaliptos. E relembro
o barco da saudade, de regresso à margem esquerda do Mondego, agora que o dia
tinha terminado. Com o Pama a cantar, em voz dolente e cansada, uma canção
envolvente, acompanhado por um coro de vozes arrastadas, daqueles que
regressavam aos seus modestos lares, ao tombar da cálida tarde. Era uma canção
simples da gente simples. Era a canção do barqueiro.
Quito Pereira
Um bom texto que nos recorda tempos passados e em que o Mondego era metade água e metade areia!
ResponderEliminarEsta não era a ponte do Modesto.