Sair daquele amontoado de prédios coloridos e trazer o
coração a reboque. Olhar aquele cabeço que já se diluiu na noite e deixar para
trás quem amamos. A alma quebrada em mil estilhaços e, nos ouvidos, como que a
esvoaçar, o sorriso radiante de uma criança.
Depois, rumar a norte. Amordaçar o coração e enfrentar a
autoestrada dos mil perigos. Como cometas vindos da sombra, os carros passam
por mim a grande velocidade. Vêm com uma parafernália de luzes acesas, em
grande arraial, como se o carro fizesse parte do culto do proprietário e da sua
personalidade agressiva. Aqui e ali, vamos todos numa fila meio louca.
Não podemos abrandar e então, pressentindo o perigo, recorro
à potência do meu carro para tentar sair daquela corrida de alucinados. Consigo
os meus intentos e vejo aquele cortejo rodoviário sumir-se na minha retaguarda.
Agora estou de novo só, tentando manter uma distância de segurança que me
permita uma manobra de recurso.
Guio tenso, tentando adivinhar na noite escura as ciladas da
estrada e a trajetória dos outros carros, abrandando quando algo se me afigura
estranho.
Estou cansado. Preciso de parar. De recompor o estômago com
uma refeição leve. Paro numa área da autoestrada. Lá dentro, pouca gente. Dois
casais falam em voz baixa, enquanto vão comendo vagarosamente uma sopa de alho francês. Opto pelo mesmo menu,
a que acrescentei um pão e dois pastéis de bacalhau que tirei da vitrina,
enquanto a minha companheira deambulava na procura do que mais lhe conviesse
para jantar.
No salão amplo, numa pequena mesa, olhei distraidamente dois
homens. Um era magro e jovem. Recostado descontraidamente na cadeira e de perna
traçada, olhava pensativo o telemóvel. O outro, bem mais velho, ia observando absorto,
as incidências de um jogo de futebol que passava num canal de televisão.
Definitivamente, o jogo não parecia interessar-lhe. Mas olhava, distante e
envolto em pensamentos. Por momentos, o rosto pendia-lhe para o peito, enquanto
ia rodando o garfo no esparguete que mastigava em ritmo lento, naquela hora de
jantar já tardia.
O que me impressionou naquele homem avantajado, foi o seu
trajar de negro e um boné também preto que lhe descaía para os olhos e que
manteve sempre na cabeça, o que lhe dava ainda um ar mais pesado. Uns óculos
igualmente cor de luto, compunham aquela figura que tinha algo de quase
misterioso.
Enquanto jantava, reparei que ele e o seu companheiro não trocaram palavra. Depois, em silêncio, partiram. Segui o seu carro, que rapidamente se sumiu na noite de breu.
Enquanto jantava, reparei que ele e o seu companheiro não trocaram palavra. Depois, em silêncio, partiram. Segui o seu carro, que rapidamente se sumiu na noite de breu.
Soube depois, porque alguém da região o disse, que aquele personagem
era um artista português muito conhecido, e que há décadas está entre os mais
apreciados cantores nacionais, tendo até pisado palcos da eurovisão, quer como
autor de letras de canções, quer como intérprete. Solidário, o homem de negro,
numa festa de angariação de fundos para uma corporação de bombeiros da zona de
Santarém, ofereceu o valor da sua atuação à comissão organizadora do evento. Um
gesto nobre do artista.
Enquanto prosseguia viagem ao volante do meu carro, recordei alguns momentos televisivos de grande apoteose
artística do homem de negro, sempre seguido por uma legião de admiradores. Mas
ali, naquela hora e naquele troço de autoestrada, o que observei foi um simples
cidadão que me pareceu ser um homem só, apesar de estar acompanhado, longe dos
palcos e dos holofotes da sua agitada profissão.
Porque nós, todos nós, sejamos simples anónimos ou figuras
dos mais apreciados talentos, necessitamos nesta passagem pela vida de nos
reencontrarmos com nossa própria identidade. De merecer o recato da nossa
solidão. Nem que seja numa simples mesa de um restaurante, na fresca noite
escalabitana.
Quito Pereira
...e assim regressaste de Lagos a Coimbra.
ResponderEliminarApanhaste filas de automóveis? Nada puxaste pelo teu potente carro e ultrapassaste a fila...2 pasteis de bacalhau, uma sopita e não é que encontraste o cantor da bairrada....adios adieu auf wiedersehen goodbye
Estás a ver como o meu conselho, para a compra do carro, foi bom! Se tens comprado outra marca ainda hoje vinhas atrás da fila.
ResponderEliminarSe fosse antes do 25 de Abril, eu diria que o homem de negro com chapéu era um gajo da PIDE, mas afinal enganava-me e bem!... Era um Homem solidário e naquele momento, também solitário...
Boa prosa! Um abraço e bem vindo.
Quito, à medida que lia sobre tua viagem, vinha-me à mente uma música do Roberto Carlos, que me ajudou, mentalmente, a imaginar as cenas por ti descritas.
ResponderEliminarAliás, falas dos perigos da autoestrada, mas é porque ainda não conheces os perigos da Rodovia por onde trafego, diariamente, para o trabalho e retorno à casa.
Tal como tu, também eu fico observando os carros que quase passam por cima do meu, tanta é a pressa na ultrapassagem. Às vezes rio, porque, ao ultrapassarem, naquela velocidade toda, observo aquelas frases fixadas no vidro traseiro: "Guiado por Deus". E converso comigo mesma..."Imagine se fosse guiado pelo Diabo!".
Outros, o carro é tão sucata - e nem sei como o Departamento de Trânsito permite circular uma lataria velha daquelas - mas está escrito, também no vidro traseiro: "Propriedade de Jesus". Então rio daquilo, a pensar: "Caramba, a crise também chegou lá pelo Céu".
Tal como tu, sou muito observadora, tanto em relação a paisagem de todo o trajeto, como também as pessoas, com suas negligências, atendendo celular atravessando uma Rodovia com seus "milhões" de perigos; mães que largam seus filhos, crianças, correndo em disparada, enquanto elas falam ao celular despreocupadamente; corpos de cachorro recentemente atropelados, que me fazem chorar; esqueletos de outros, com certeza mortos há muito tempo. Alguns gatos, certamente esgotada a sétima e última chance de vida. Enfim, histórias do nosso dia a dia.
Se até Roberto Carlos, ao dirigir, teve suas divagações... imagine nós, pobres mortais, não é Quito?
"120... 150... 200 Km Por Hora" (R.C)
As coisas estão passando mais depressa
O ponteiro marca 120
O tempo diminui
As árvores passam como vultos
A vida passa, o tempo passa
Estou a 130
As imagens se confundem
Estou fugindo de mim mesmo
Fugindo do passado, do meu mundo assombrado
De tristeza, de incerteza
Estou a 140
Fugindo de você
Eu vou voando pela vida sem querer chegar
Nada vai mudar meu rumo nem me fazer voltar
Vivo, fugindo, sem destino algum
Sigo caminhos que me levam a lugar nenhum
O ponteiro marca 150
Tudo passa ainda mais depressa
O amor, a felicidade
O vento afasta uma lágrima
Que começa a rolar no meu rosto
Estou a 160
Vou acender os faróis, já é noite
Agora são as luzes que passam por mim
Sinto um vazio imenso
Estou só na escuridão
A 180
Estou fugindo de você
Eu vou sem saber pra onde nem quando vou parar
Não, não deixo marcas no caminho pra não saber voltar
Às vezes sinto que o mundo se esqueceu de mim
Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou viver assim
O ponteiro agora marca 190
Por um momento tive a sensação
De ver você a meu lado
O banco está vazio
Estou só, a 200 por hora
Vou parar de pensar em você
Pra prestar atenção na estrada
Vou sem saber pra onde nem quando vou parar
Não, não deixo marcas no caminho pra não saber voltar
Às vezes, às vezes sinto que o mundo se esqueceu de mim
Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou viver assim
Eu vou, vou voando pela vida
Sem querer chegar...
https://www.youtube.com/watch?v=HZfvYsLsgVI
Comentário que é uma delícia, como delícia é o vídeo de Roberto Carlos
ResponderEliminarROBERTO CARLOS - 120, 150, 200 KM POR HORA.
Imagino como deve ser arrepiante ir para o trabalho e seu regresso a casa nesse trânsito infernal. Quase que de deve dizer: sorte é escapar sem acidente!|
Muito bom Chama a Mamãe!
E por falar em ir de carro, todos os dias, para o trabalho, eu fazia 30 Km todos os dias, para o trabalho, demorava 20 a 25 minutos e quando nos semáforos tinha mais de dois carros à minha frente, dizia à Daisy: deve ser casamento, com estes carros todos!...
ResponderEliminarAs viagens do Quito são sempre para apreciar mas a dez à hora ⏰!
ResponderEliminarChama a Mamãe foi acelerando, mas deu para imaginar...
Boas leituras de dois artistas das palavras!