quinta-feira, 21 de setembro de 2017

APOTEOSE E SOLIDÃO ...



Sair daquele amontoado de prédios coloridos e trazer o coração a reboque. Olhar aquele cabeço que já se diluiu na noite e deixar para trás quem amamos. A alma quebrada em mil estilhaços e, nos ouvidos, como que a esvoaçar, o sorriso radiante de uma criança.

Depois, rumar a norte. Amordaçar o coração e enfrentar a autoestrada dos mil perigos. Como cometas vindos da sombra, os carros passam por mim a grande velocidade. Vêm com uma parafernália de luzes acesas, em grande arraial, como se o carro fizesse parte do culto do proprietário e da sua personalidade agressiva. Aqui e ali, vamos todos numa fila meio louca.

Não podemos abrandar e então, pressentindo o perigo, recorro à potência do meu carro para tentar sair daquela corrida de alucinados. Consigo os meus intentos e vejo aquele cortejo rodoviário sumir-se na minha retaguarda. Agora estou de novo só, tentando manter uma distância de segurança que me permita uma manobra de recurso.

Guio tenso, tentando adivinhar na noite escura as ciladas da estrada e a trajetória dos outros carros, abrandando quando algo se me afigura estranho.

Estou cansado. Preciso de parar. De recompor o estômago com uma refeição leve. Paro numa área da autoestrada. Lá dentro, pouca gente. Dois casais falam em voz baixa, enquanto vão comendo vagarosamente uma   sopa de alho francês. Opto pelo mesmo menu, a que acrescentei um pão e dois pastéis de bacalhau que tirei da vitrina, enquanto a minha companheira deambulava na procura do que mais lhe conviesse para jantar.

No salão amplo, numa pequena mesa, olhei distraidamente dois homens. Um era magro e jovem. Recostado descontraidamente na cadeira e de perna traçada, olhava pensativo o telemóvel. O outro, bem mais velho, ia observando absorto, as incidências de um jogo de futebol que passava num canal de televisão. Definitivamente, o jogo não parecia interessar-lhe. Mas olhava, distante e envolto em pensamentos. Por momentos, o rosto pendia-lhe para o peito, enquanto ia rodando o garfo no esparguete que mastigava em ritmo lento, naquela hora de jantar já tardia. 

O que me impressionou naquele homem avantajado, foi o seu trajar de negro e um boné também preto que lhe descaía para os olhos e que manteve sempre na cabeça, o que lhe dava ainda um ar mais pesado. Uns óculos igualmente cor de luto, compunham aquela figura que tinha algo de quase misterioso. 

Enquanto jantava, reparei que ele e o seu companheiro não trocaram palavra. Depois, em silêncio, partiram. Segui o seu carro, que rapidamente se sumiu na noite de breu.

Soube depois, porque alguém da região o disse, que aquele personagem era um artista português muito conhecido, e que há décadas está entre os mais apreciados cantores nacionais, tendo até pisado palcos da eurovisão, quer como autor de letras de canções, quer como intérprete. Solidário, o homem de negro, numa festa de angariação de fundos para uma corporação de bombeiros da zona de Santarém, ofereceu o valor da sua atuação à comissão organizadora do evento. Um gesto nobre do artista.

Enquanto prosseguia viagem ao volante do meu carro, recordei alguns  momentos televisivos de grande apoteose artística do homem de negro, sempre seguido por uma legião de admiradores. Mas ali, naquela hora e naquele troço de autoestrada, o que observei foi um simples cidadão que me pareceu ser um homem só, apesar de estar acompanhado, longe dos palcos e dos holofotes da sua agitada profissão.

Porque nós, todos nós, sejamos simples anónimos ou figuras dos mais apreciados talentos, necessitamos nesta passagem pela vida de nos reencontrarmos com nossa própria identidade. De merecer o recato da nossa solidão. Nem que seja numa simples mesa de um restaurante, na fresca noite escalabitana.  
Quito Pereira         

6 comentários:

  1. ...e assim regressaste de Lagos a Coimbra.
    Apanhaste filas de automóveis? Nada puxaste pelo teu potente carro e ultrapassaste a fila...2 pasteis de bacalhau, uma sopita e não é que encontraste o cantor da bairrada....adios adieu auf wiedersehen goodbye

    ResponderEliminar
  2. Estás a ver como o meu conselho, para a compra do carro, foi bom! Se tens comprado outra marca ainda hoje vinhas atrás da fila.
    Se fosse antes do 25 de Abril, eu diria que o homem de negro com chapéu era um gajo da PIDE, mas afinal enganava-me e bem!... Era um Homem solidário e naquele momento, também solitário...
    Boa prosa! Um abraço e bem vindo.

    ResponderEliminar
  3. Quito, à medida que lia sobre tua viagem, vinha-me à mente uma música do Roberto Carlos, que me ajudou, mentalmente, a imaginar as cenas por ti descritas.
    Aliás, falas dos perigos da autoestrada, mas é porque ainda não conheces os perigos da Rodovia por onde trafego, diariamente, para o trabalho e retorno à casa.
    Tal como tu, também eu fico observando os carros que quase passam por cima do meu, tanta é a pressa na ultrapassagem. Às vezes rio, porque, ao ultrapassarem, naquela velocidade toda, observo aquelas frases fixadas no vidro traseiro: "Guiado por Deus". E converso comigo mesma..."Imagine se fosse guiado pelo Diabo!".
    Outros, o carro é tão sucata - e nem sei como o Departamento de Trânsito permite circular uma lataria velha daquelas - mas está escrito, também no vidro traseiro: "Propriedade de Jesus". Então rio daquilo, a pensar: "Caramba, a crise também chegou lá pelo Céu".
    Tal como tu, sou muito observadora, tanto em relação a paisagem de todo o trajeto, como também as pessoas, com suas negligências, atendendo celular atravessando uma Rodovia com seus "milhões" de perigos; mães que largam seus filhos, crianças, correndo em disparada, enquanto elas falam ao celular despreocupadamente; corpos de cachorro recentemente atropelados, que me fazem chorar; esqueletos de outros, com certeza mortos há muito tempo. Alguns gatos, certamente esgotada a sétima e última chance de vida. Enfim, histórias do nosso dia a dia.
    Se até Roberto Carlos, ao dirigir, teve suas divagações... imagine nós, pobres mortais, não é Quito?

    "120... 150... 200 Km Por Hora" (R.C)
    As coisas estão passando mais depressa
    O ponteiro marca 120
    O tempo diminui
    As árvores passam como vultos
    A vida passa, o tempo passa
    Estou a 130
    As imagens se confundem
    Estou fugindo de mim mesmo
    Fugindo do passado, do meu mundo assombrado
    De tristeza, de incerteza
    Estou a 140
    Fugindo de você

    Eu vou voando pela vida sem querer chegar
    Nada vai mudar meu rumo nem me fazer voltar
    Vivo, fugindo, sem destino algum
    Sigo caminhos que me levam a lugar nenhum

    O ponteiro marca 150
    Tudo passa ainda mais depressa
    O amor, a felicidade
    O vento afasta uma lágrima
    Que começa a rolar no meu rosto
    Estou a 160
    Vou acender os faróis, já é noite
    Agora são as luzes que passam por mim
    Sinto um vazio imenso
    Estou só na escuridão
    A 180
    Estou fugindo de você

    Eu vou sem saber pra onde nem quando vou parar
    Não, não deixo marcas no caminho pra não saber voltar
    Às vezes sinto que o mundo se esqueceu de mim
    Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou viver assim

    O ponteiro agora marca 190
    Por um momento tive a sensação
    De ver você a meu lado
    O banco está vazio
    Estou só, a 200 por hora
    Vou parar de pensar em você
    Pra prestar atenção na estrada

    Vou sem saber pra onde nem quando vou parar
    Não, não deixo marcas no caminho pra não saber voltar
    Às vezes, às vezes sinto que o mundo se esqueceu de mim
    Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou viver assim
    Eu vou, vou voando pela vida
    Sem querer chegar...

    https://www.youtube.com/watch?v=HZfvYsLsgVI

    ResponderEliminar
  4. Comentário que é uma delícia, como delícia é o vídeo de Roberto Carlos
    ROBERTO CARLOS - 120, 150, 200 KM POR HORA.
    Imagino como deve ser arrepiante ir para o trabalho e seu regresso a casa nesse trânsito infernal. Quase que de deve dizer: sorte é escapar sem acidente!|
    Muito bom Chama a Mamãe!

    ResponderEliminar
  5. E por falar em ir de carro, todos os dias, para o trabalho, eu fazia 30 Km todos os dias, para o trabalho, demorava 20 a 25 minutos e quando nos semáforos tinha mais de dois carros à minha frente, dizia à Daisy: deve ser casamento, com estes carros todos!...

    ResponderEliminar
  6. As viagens do Quito são sempre para apreciar mas a dez à hora ⏰!
    Chama a Mamãe foi acelerando, mas deu para imaginar...
    Boas leituras de dois artistas das palavras!

    ResponderEliminar