Acordei embalado por um dia doce. Hoje – vinte e oito de Janeiro
– há um sol que rasga a penumbra da
sala, trespassando as frestas da persiana mal corrida. Um rendilhado de
luminosidade, projeta-se e espalha-se pela parede branca, como peças de um jogo
de xadrez, alinhadas com critério no início da peleja. Depois, como todas as
manhãs, parti para a vida.
Dia estranho, coberto de sol, neste inverno que hoje fez uma
trégua com a natureza. A estrada está limpa, lavada das chuvas dos últimos dias.
Um ar fresco penetra-me pelas narinas e a Serra da Estrela, de alvo véu nevado a
esconder a tez morena, está coberta de silêncio.
Entre este hino mudo do glorificar da vida, da terra castanha
confortada de água, da esteva atrevida a querer renascer antes do tempo, das
hortas verdes de esperança, dos couvais resplandecentes a derramarem-se para a
terra pelo peso da folhagem e o palco agreste de vidas perdidas, vai apenas um
sopro de desesperança.
Ele - o João C. - caminha pela berma da estrada como se fosse
um autómato. Anda em passo ligeiro, carregando a sua pequena estatura e uma
cara cuja referência são uns largos e velhos óculos, de lentes que parecem o
fundo de uma garrafa, pela espessura do vidro graduado.
Senta-se à lareira do café escuro e
olha a televisão sem interesse. Tem dificuldade de visão, mas lê o jornal
diário, que encosta ao nariz para decifrar as notícias. A meio da tarde, bebe
uma cerveja, a única despesa que faz. Os proventos são de miséria, de um
desempregado de longa duração. Longe vão os tempos, em que o João atendia a
clientela da melhor loja de ferragens da região, um mundo de mercadoria variada
e que fechou portas para surpresa da cidade, há mais de uma década.
Então, quase noite, regressa ao lar, onde vive só. Passa por
mim e cumprimenta-me com a educação que sempre lhe reconheci, naquele seu jeito
humilde. Fico a olha-lo, até desaparecer na curva do caminho. Depois desço ao
interior das minhas inquietações, a refletir no percurso de vida daquele pequeno
homem, que já conheço há muitos anos. Um viver sem sentido, em que cada dia é
um dia. Uma vida sem diário. Ou de um diário triste, feito apenas de folhas
soltas ao vento …
Quito Pereira
Só agora por aqui vim.
ResponderEliminarBoa surpresa esta postagem...pois vinha a pensar o que teria por aqui para postar.
Já não pensei, pensaste por mim!
Belo texto que por momentos te transportou a um passado não muito distante,pois onde se passou uma parte da vida, memórias destas deves ter mais, muitas mais para contar!
Um abraço
Em Coimbra, tens mais amigos (velhos amigos), mais família e até mais calor, mas jamais terás a "Serra da Estrela, de alvo véu nevado a esconder a tez morena, está coberta de silêncio"... Nem a inesgotável fontes de inspiração daquele povo que bem conhecias e a quem davas um ombro amigo para, pacientemente, ouvires as confidências das amarguras da vida.
ResponderEliminarA inspiração do texto de hoje leva-me a à pressupor que te apeteceu recuar no tempo e aos afetos.
ResponderEliminarHá circunstâncias que motivam à reflexão...
Bela prosa Quito!