Aldeia do Cide
O Júlio Bicho é um homem bom. Avantajado de corpo e
bonacheirão, logo deu nas vistas aos camaradas de armas, quando em batalhão
partimos para a Guiné. Fomos, voltámos, e quase todos sobrevivemos. E é essa
glória do apego pela vida, que nos faz juntar todos os anos. Ele, o Bicho,
vindo lá do Alentejo profundo, aparece sempre. Vem alegre e falador, trazendo
sempre com ele um rebanho de família. Também foi assim no passado dia sete de outubro,
quando mais de cem almas nos juntámos lá para os lados de Fátima.
A mensagem que me mandavam era devastadora. Um camarada de
armas dizia-me e informava a nossa comunidade militar, que uma filha do Júlio
Bicho tinha morrido com o marido num dos incêndios florestais que devastaram o
país. Informava também que o casal deixava dois filhos menores e que era
necessário o grupo militar tomar providências com vista a prestar auxilio às
crianças e que para tal era preciso nomear uma comissão de ajuda aos órfãos.
Porém, prioritariamente, era preciso dar força e um abraço solidário ao nosso
amigo, lembrar-lhe que para além de festas e abraços dos bons momentos, também
ali estávamos com ele nas horas amargas.
De mapa na mão e expectativa no coração, partimos de Coimbra
na procura da aldeia de Vide, onde eram as exéquias fúnebres. Na medida em que
penetrávamos no ventre do país, o nosso coração ia ficando mais negro. Devagar
em curva e contra – curva, a paisagem escura tomava conta do cenário. Também
casas arruinadas pelo fogo, janelas estilhaçadas e carcaças de carros na margem
das estradas de mau piso. Aqui e ali, casas intactas com quintais destruídos.
Naquela propriedade queimada, vejo um homem de botas de borracha, que vai
deambulando como um sonâmbulo no zénite da desesperança. Pega numa mangueira
que olha atentamente e, de imediato, num ato de revolta, atira-a ao chão.Enquanto vou progredindo cauteloso no asfalto, vou olhando as
árvores queimadas na berma da estrada, algumas sujeitas a tombar para a via e a
necessitar de uma intervenção urgente. Entretanto, aqui e ali, muitas fumarolas
e pedaços de madeira a arder e a extinguirem-se, já inofensivos. Era o render
do demónio. Lá mais à frente, naquele deserto de gente e de árvores calcinadas,
vejo outro habitante. Apesar da proximidade do carro, o homem ignora-me e
atravessa a estrada em passo lento. É ainda novo e fixo-lhe uma mortalha de
cigarro pendente da boca. Como que atordoado e olhos fixos no alcatrão, parece
caminhar sem rumo certo. Curva e contra – curva, chegamos ao destino. Eu e minha
mulher somos olhados com a curiosidade dos forasteiros que nunca foram vistos
por aquelas paragens. Com expectativa, procuro outros amigos da minha família
militar que ainda não tinham chegado. Mas chegaram pouco depois. Foi então que
um jovem de camisola negra se abeirou de nós. Disse ser familiar dos falecidos
e que até tinha sido ele nas buscas pelos desaparecidos, que os tinha encontrado
pelas cinco horas da madrugada, num cenário que me escuso a descrever. Sentada
à porta da igreja num banco de madeira, a idosa vestida de negro vai-nos
contando a noite de terror e das noites sem fim. Fala-nos nos dois geradores de
eletricidade que funcionam nas extremidades da aldeia, para assim abarcar mais
gente que necessita de luz. Porém e por vezes, os geradores falham em
simultâneo, deixando aquela aldeia no fundo do vale afundada nas trevas da
noite e do carvão, com a silhueta das serras queimadas a tornar o cenário mais
assustador. Cá fora, algumas mulheres choram baixinho. E eles, os homens,
dispostos numa roda, vão contando estórias daquela noite de inferno. Cada um
tem um episódio para contar. Mas não choram porque as lágrimas já se lhes secaram. Olham o futuro partindo de um presente de
privações e angústias, agora que as montanhas feridas de morte lhes nega o pão.
Mas resistem, como resistem os heróis.
A Raquel e António viviam na aldeia do Cide, um pequeno
lugarejo de meia dúzia de casas, encravado no meio de uma montanha. Naquele
dia, a montanha rodeada de outras
montanhas, teve um acesso de fúria. Num ápice, tudo o que a vista alcançava
começou a arder. O casal, veio então a Vide pôr os dois filhos a salvo, para
depois num ato irrefletido e até incompreensível, de novo subirem a montanha em
chamas, para irem a casa procurar e reaver alguns documentos e bens. Apanhados
no turbilhão do fumo e do fogo, completamente desprotegidos, sucumbiram ao inferno.
Tentaram, numa luta desigual, medir forças com o demónio e perderam.
No amplo templo da igreja na penumbra por falta de luz, teve
lugar a missa de corpo presente daqueles dois filhos da montanha. Olhando o que
me rodeava, fui percebendo que a plateia da gente simples, cantava com um
fervor que ecoava pelo templo. A tragédia acicatava-lhes a fé. O Júlio Bicho, o
tal homem alegre e folgazão, sentado na primeira fila, era agora um homem
pálido, vestido de negro e parecia alheio à cerimónia. Então o Bispo da Guarda
falou. De palavra fácil, não entrou em chavões litúrgicos de filosofias
difíceis de entender. Nem em discursos piedosos no tributo às duas vítimas.
Falou mais nos homens do que de Deus. Privilegiou mais a vida e falou de
esperança. Terminou a sua linha de pensamento falando dos povos sós e
abandonados, entregues à sua sorte. Acredito que grande parte aquela plateia
silenciosa de gente campesina e humilde, não terá entendido a subtileza da
afirmação. Mas a entidade que ali estava em representação do Presidente da
República, terá compreendido certamente.
Quito Pereira
Sinto muito por este momento bem triste que passaste pela morte que se abateu sobre os familiares do teu companheiro de armas.
ResponderEliminarConseguiste em palavras uma imagem perfeita de toda a tragédia dos incêndios que abalou toda aquela região do interior!
Os relatos e imagens que as TV continuam a dar são aterradoras.
Vai levar anos a que todas estas regiões retomem uma paisagem parecida com a anterior.O mais necessário por agora é dar condições de vida às populações, reconstruindo casas, restabelecendo as empresas e a vida animal também não seja esquecida.
Obrigado pelo teu relato.
ResponderEliminarDescrevem muito bem o que aconteceu ao teu
companheiro de armas.
Um abraço
Zé Afonso
Infelizmente o que acabo de ler não é um texto da tua imaginação. Descreves a realidade bem cruel do inferno que foram estes últimos dias. No Sábado, também fui a Oliveira do Hospital, em missão de solidariedade e ao longo de toda a IC6 vimos a destruição de ambos os lados da estrada e a perder de vista. Quando descemos de Oliveira do Hospital para Santo António do Alva que fica junto a rio, é impossível olhar à nossa volta e não chorar.
ResponderEliminarChorar de tristeza mas também de raiva. Como é possível alguém fazer uma coisa daquelas e com que finalidade?!... Eu tenho ideia e algumas certezas, mas este não é o fórum apropriado para expôr aqui as minhas opiniões sobre estes crimes.
A minha homenagem a essa gente que tudo perdeu (casa, animais, plantações e até familiares) mas que querem e conseguem manter a cabeça erguida e começar tudo de novo.
Sem dúvidas que o Quito veio-nos dar uma visão alargada não só da situação que os portugueses viveram mas também, do que têm para viver.
ResponderEliminarMais uma vez fica demonstrado o amor de Pais ao pôrem as crianças em segurança, sinal que sabiam o risco que iam correr. Também nos mostra o que vai ser o dia a dia das pessoas que vivem nas zonas afectadas assim como daqueles que pegam no volante e deparam-se com o que vêm nas suas voltas.
Isto tudo à volta de uma amizada criada há anos outras circunstancias e que as pessoas não esquecem.
Um abraço.